Ouça este conteúdo
A economia brasileira em 2020 foi movida, principalmente, a auxílio emergencial e a outras linhas de crédito propostas pelo governo federal para mitigar a crise da Covid-19. Dos quase R$ 575 bilhões do pacote de combate ao coronavírus, cerca de R$ 523 bilhões foram destinados a ações que impulsionaram a atividade econômica de alguma maneira, seja incentivando o consumo ou dando fôlego para empresas se reorganizarem.
Com isso, o tombo do PIB brasileiro em 2020 será muito menor do que o projetado quando a pandemia da Covid-19 começou. O país vinha patinando em sua recuperação e poderia entrar em recessão antes mesmo de ser afetado pela crise sanitária.
O Fundo Monetário Internacional (FMI), por exemplo, chegou a projetar retração de 9,1% em junho, dado que foi revisado para 5,8% em outubro. O mercado financeiro, conforme a mediana das projeções do boletim Focus, do Banco Central, não foi tão negativo: chegou a projetar um recuo de 6,54% em junho, mas agora aposta em retração de 4,4%.
As projeções internacionais foram mais rigorosas, mas não contabilizaram o impacto das medidas do governo. O Brasil literalmente despejou dinheiro público para conter a crise, e terá de lidar com as consequências dessa ampliação do gasto nos próximos ano – sobretudo pelo aumento da dívida pública.
Para analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, a economia caminhou melhor que o esperado em 2020 graças ao auxílio emergencial, que teve o reforço das medidas de preservação do emprego e criação de linhas de crédito adicionais. Porém, o fim desses programas em 2020 é um risco para a atividade econômica em 2021, que terá de seguir adiante sem essas muletas.
Economia movida a auxílio emergencial
O resultado do PIB brasileiro em 2020, apesar da retração, acabou “surpreendendo positivamente”, avalia Patricia Krause, economista da Coface para América Latina. “Não foi só, mas o auxílio emergencial foi realmente o principal fator que sustentou a demanda”, disse.
Ela ainda cita como fundamentais a proteção ao mercado de trabalho – com o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, que permitiu a suspensão dos contratos de trabalho e redução de salários e jornadas –, e as medidas de crédito, que deram fôlego a empresas.
A economista Zeina Latif compartilha dessa análise. Para ela, o auxílio emergencial foi o fator-chave, mas não apenas a sua redução de R$ 600 para R$ 300, como também a variação do fluxo dos pagamentos, influenciará o resultado econômico dos últimos meses de 2020.
“O papel do auxílio emergencial é importante pelo seguinte: em um país de renda média e com tanta pobreza, estimular a demanda para consumo das famílias é a coisa mais fácil do mundo, porque tem um tremendo consumo reprimido e o governo colocou um caminhão de dinheiro”, avalia.
Esse impacto no consumo é destacado por Alessandra Ribeiro, sócia-diretora da área de macroeconomia e análise setorial da Tendências Consultoria, que explica a influência maior em alguns setores.
“Isso fica muito evidente na parte dos supermercados, materiais de construção, moveis e eletrodomésticos, que teve um papel superimportante para consumo das famílias, principalmente nas classes D e E. Por isso que a retirada do auxílio, na nossa avaliação, também vai pesar do outro lado”, diz. A perspectiva da consultoria é de que o mercado de trabalho não vai retomar tão rapidamente a ponto de compensar o fim do auxílio.
O professor do Insper Fernando Ribeiro Leite diz que o pacote de apoio a renda e emprego lançado pelo governo brasileiro seguramente foi um dos maiores do mundo, em termos de percentagem do PIB.
“No nordeste, cerca de três quartos dos domicílios sobreviveram por causa da renda. Foi a única que eles tiveram. Foi absolutamente fundamental o auxílio emergencial, num contexto em que o desemprego foi para 14%, e junta mais o desalento… uns 30% da população do país sem renda”, analisa.
A “bênção” das commodities
Apesar de ser o fator principal de impulso da economia brasileira em 2020, o auxílio emergencial não foi o único. A economista Zeina Latif considera que as linhas de crédito funcionaram bem na crise, com boa reação do Banco Central e do setor bancário, apesar de dificuldades atreladas ao fato de muitas empresas não serem bancarizadas, estarem na informalidade e terem dificuldades de acesso a crédito.
Ela também destaca o setor agropecuário e exportador, ainda que não seja um “puxador de PIB”. “O que foi sempre uma preocupação para o Brasil, de ter a pauta muito concentrada em commodities, acabou virando uma bênção. Todo o mundo contraiu exportação, e o Brasil avançou”, diz.
As vendas de minério de ferro e alimentos para a China cresceram, porque o país asiático conseguiu conter o avanço da Covid-19 e fez políticas muito fortes de auxílio a empresas, o que proporcionou uma recuperação em V da economia, na avaliação de Zeina.
Os riscos que rondam o PIB em 2021
A retirada desse pacote robusto de ajuda é uma ameaça para a retomada da economia em 2021. Mas não é a única. Na avaliação de Patricia Krause, da Cofase, há muita incerteza especialmente para o primeiro trimestre de 2021. A retirada do auxílio emergencial, sem um novo programa de assistência social, deve frear o consumo. Mas a questão da vacinação tem influência, principalmente se ocorrer até março.
“Então, no segundo trimestre, isso já poderia ajudar um pouco na recuperação de setores mais afetados, como é o caso de serviços, que é mais restrito por conta do vírus”, avalia. A questão da incerteza fiscal também pesa. “Esperamos que seja mantido o teto de gastos e que fique aprovada no começo do ano a regulamentação dos gatilhos [que limitariam os gastos públicos em caso de descumprimento do teto]. Isso ajudaria também o ambiente econômico”.
Para o professor do Insper Fernando Ribeiro Leite, um problema do país, anterior à pandemia, é a ausência de uma política econômica clara. “É uma falta de sinalização com relação à estabilidade fiscal da economia, as contas públicas, falta de engajamento, organização e proatividade do executivo federal, no sentido de encaminhar propostas, reformas”, diz.
Ele avalia que parte dessa proatividade foi capturada pelo Congresso, mas a pandemia congelou tudo. E isso se reflete no desempenho ruim da economia brasileira que, apesar de todos os problemas, ainda é muito resiliente.
Entre os problemas anteriores e persistentes, a economista Zeina Latif cita a dificuldade de o Brasil estabelecer um debate econômico de qualidade – e a pandemia acabou interditando parte da discussão sobre o quadro fiscal. A experiência da pandemia mostrou que o país se saiu bem onde já tinha alguma expertise, como é o caso das ações de transferência de renda. “Falou-se de esforço de guerra. Não teve. Não teve comitê de crise: teve improviso”, diz.
Para ela, o excesso de despesas decididas no afogadilho da crise, e sem estudos para avaliar o impacto das medidas, reforçam o viés “gastador” do país. “Já estamos falando de ter ambiente macroeconômico mais instável. Quanto vai ter que piorar para lembrar que não pode descuidar do fiscal?”, diz.
Se o país seguir nessa toada e não olhar com um mínimo de zelo para os números das contas públicas, continuará tendo ciclos muito fortes de problemas fiscais e econômicos, porque só piorando muito o cenário é tomada alguma providência para destravar. Um exemplo citado pela economista é a reforma da Previdência, que não reduziu despesa, apenas conteve seu crescimento.
Se o país seguir pelo caminho do aumento de gastos para 2021 – seja com um novo orçamento de guerra, flexibilização da regra do teto de gastos ou aumento dos créditos extraordinários – terá de propor medidas compensatórias. “Precisamos entender que tem de haver uma contrapartida”, diz.
Ela cita como possibilidade uma revisão da proposta de reforma administrativa, que também mude regras para os atuais servidores, ou a aprovação da PEC Emergencial, que possibilite a redução da folha de pessoal: “O Brasil não fez ajuste fiscal ainda. Qualquer gasto que fizer, tem que pensar em contrapartida, nem que seja de médio prazo”.
Nesse sentido, a economista avalia que o papel da política é importante. “A política importa porque precisa ter liderança, e um governo como o Bolsonaro, que não é reformista, atrapalha muito.”
Colaborou Giulia Fontes