Após sete anos, a participação dos bancos públicos no crédito voltou a aumentar, segundo o Banco Central. A fatia dessas instituições no total de empréstimos do país passou de 42,3% no fim de 2022 para 42,8% em dezembro de 2023. Ao todo, cerca de R$ 2,5 trilhões da carteira de financiamentos foram emprestados por bancos estatais.
Embora discreto, o avanço observado em 2023 representa um ponto de inflexão relevante. Afinal, a fatia dos bancos controlados pelo governo vinha diminuindo ano a ano desde o impeachment de Dilma Rousseff (PT).
O pico de participação deles, de 56,8% do crédito total, foi alcançado justamente no último mês da petista no cargo – maio de 2016. Passou a diminuir já nos meses seguintes, no governo de Michel Temer (MDB), e seguiu em baixa na gestão de Jair Bolsonaro (PL).
Quando se observa o dado de dezembro de cada ano, o maior número é o do fim de 2015, último ano completo de Dilma na Presidência.
Participação dos bancos públicos na carteira de crédito total (fonte: Banco Central)
2014 | 53,8% |
2015 | 56,0% |
2016 | 55,8% |
2017 | 54,2% |
2018 | 51,2% |
2019 | 47,0% |
2020 | 45,0% |
2021 | 42,5% |
2022 | 42,3% |
2023 | 42,8% |
A fatia dos bancos públicos seguiu crescendo em 2024. Em fevereiro, ela chegou a 43,2%, segundo dados publicados nesta terça-feira (2) pelo Banco Central.
Segundo especialistas consultados pela Gazeta do Povo, dois fatores principais contribuíram para o aumento na participação dos bancos públicos. São eles a expansão do crédito direcionado, como o crédito rural e o imobiliário, em que os bancos públicos tradicionalmente têm participação relevante; e as crises em empresas como Americanas e Light, que limitaram o crescimento na concessão de crédito por parte das instituições privadas.
Carteira de crédito direcionado aumentou 11,9% em 2023
O saldo de crédito direcionado – empréstimos concedidos principalmente por bancos públicos a empresas e pessoas físicas com finalidades específicas e geralmente com taxas de juros subsidiadas – aumentou 11,9% no ano passado, aponta o BC. Em fevereiro, ele já correspondia a R$ 2,4 trilhões, ou 42% do total do mercado.
Luís Miguel Santacreu, analista de bancos da Austin Rating, atribui esse crescimento à alta na concessão de crédito para dois segmentos: o rural e o imobiliário. “São segmentos em que os bancos públicos estão bem-posicionados: o BB é forte no crédito rural e a Caixa, no imobiliário”, diz.
Em 2023, as concessões de crédito direcionado para o campo cresceram 10,8%, atingindo R$ 322,1 bilhões, destaca o BC. “O bom momento da agropecuária justifica essa situação”, afirma Santacreu. O PIB agropecuário cresceu 15,1% no mesmo ano, impulsionado por uma safra excepcional de 322,8 milhões de toneladas.
O setor imobiliário, que depende muito do crédito direcionado dos bancos públicos, também teve um bom momento. A carteira de financiamentos de imóveis com recursos direcionados aumentou 12,8% em 2023, totalizando R$ 1,1 trilhão em janeiro.
Segundo um levantamento da Associação Brasileira das Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) e da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), as vendas de imóveis novos cresceram 29,2% entre janeiro e novembro de 2023, comparado ao mesmo período do ano anterior. O crescimento foi impulsionado por imóveis de médio e alto padrão e pelo programa Minha Casa, Minha Vida, que representou 48,5% do valor total de vendas nos 11 meses.
Crise em empresas afeta crédito privado
A carteira de crédito das instituições financeiras privadas encerrou 2023 em R$ 3,3 trilhões, 7% a mais em relação a 2022. Esses números poderiam ser mais robustos se não fossem os problemas em grandes empresas.
Dois dos mais importantes foram com a Americanas, que registrou um rombo de R$ 43 bilhões, e pela Light, concessionária de energia no Rio de Janeiro. As duas empresas entraram em recuperação judicial.
O aumento no número de recuperações judiciais em 2023, que cresceu quase 70% e atingiu 1.405 pedidos, também complicou a concessão de crédito por bancos privados. O total de pedidos de recuperação foi o maior desde 2020 e o quarto maior da série da Serasa Experian, iniciada em 2005.
“Este cenário fez com que os bancos privados moderassem a concessão de crédito e se tornassem mais seletivos”, afirma Luciano Costa, economista-chefe da Monte Bravo Investimentos. As instituições foram obrigadas a reconhecer as perdas, o que exigiu capital que poderia ter sido direcionado para concessões de novos empréstimos.
As provisões, que são reservas de recursos para cobrir possíveis obrigações futuras, foram elevadas. Dados do BC mostram que, no começo de 2022, elas correspondiam a 6% da carteira de crédito das instituições financeiras privadas. Quando estourou a crise da Americanas, em fevereiro do ano passado, elas passaram a 7,2%. O pico, de 7,3%, foi registrado entre abril e agosto. Em fevereiro de 2023, as provisões estavam em 6,9% da carteira, conforme o BC.
Domínio dos bancos públicos pode ser evitado, apontam analistas
Especialistas indicam que, ao menos a curto prazo, não se espera que as instituições financeiras públicas retomem o controle do mercado de crédito, como aconteceu no período de junho de 2013 a abril de 2019.
A expectativa se mantém mesmo com a abordagem mais intervencionista do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na economia e o plano do BNDES de disponibilizar aproximadamente R$ 300 bilhões para a indústria até 2026. “O PT não governa sozinho, está em uma coalizão e não pode tudo”, diz Santacreu.
O analista também descarta um eventual uso dessas instituições para forçar uma queda nos juros, a exemplo do que ocorreu no governo Dilma Rousseff, entre 2011 e 2016.
Outro motivo que dificulta uma expansão mais forte de crédito público é que a economia está relativamente aquecida. “Não estamos indo rumo a uma recessão brutal”, destaca o analista da Austin Rating.
O ponto médio das projeções de bancos, corretoras e consultorias para o crescimento da economia brasileira em 2024 é de 1,89%, segundo o mais recente boletim Focus, do BC. O número está em alta há sete semanas consecutivas.
Analistas ressaltam que é preciso prestar muita atenção aos sinais emitidos pelo governo. Um dos motivos, segundo Nicola Tingas, economista-chefe da Associação Nacional das Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento (Acrefi), é a agenda econômica mais progressista do governo Lula.
Um dos pontos a ser observado, segundo Costa, da Monte Bravo, é em relação a eventuais capitalizações de bancos públicos, como BB, Caixa e BNDES, por parte do Tesouro Nacional. Essa medida foi usada durante o governo Dilma para fortalecê-los.
Uma estratégia que pode dificultar o domínio das instituições financeiras públicas na carteira de crédito é investir em mecanismos que fortaleçam a maior participação da iniciativa privada nesse mercado, aponta Beto Saadia, sócio da Nomos Capital. É o caso do desenvolvimento do marco legal de garantias, sancionado em outubro de 2023.
Carteira de crédito deve crescer em 2024
A Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) espera uma expansão na carteira de crédito neste ano. O ritmo de crescimento em 12 meses vem se acelerando: era de 7,6% em janeiro, e passou para 8,1% em fevereiro.
“O resultado pode ser atribuído à dissipação dos primeiros efeitos gerados pela crise dos eventos Americanas/Light no mesmo período do ano passado”, afirma Rubens Sardenberg, diretor de economia, regulação prudencial e riscos da Febraban.
Ainda assim, esse é um segmento que segue inspirando cautela e deve apresentar números modestos neste começo de ano. Por outro lado, o crédito às famílias dá sinais mais sólidos de retomada, destaca Sardenberg.
Um cenário parecido foi apontado pelo Banco Central no último Relatório Trimestral de Inflação, divulgado na quinta-feira (28). A autoridade monetária projeta um crescimento de 9,4% no estoque total de crédito para 2024, puxado por pessoas físicas.
A alta reflete a evolução além da esperada do crédito livre, que abrangeu concessões mais elevadas, o recuo da inadimplência e o aumento na projeção de crescimento da economia.
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