Ouça este conteúdo
O Bolsa Família desestimulou a busca de emprego nas camadas de renda mais baixas da população e provocou um aumento nos salários pagos a trabalhadores de baixa qualificação. Esse aumento, no entanto, parece não ter sido suficiente para convencer parte dos beneficiários do programa a entrar no mercado de trabalho. As constatações são de um estudo do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Ibre).
Analisando a estrutura salarial pré-pandemia em diferentes áreas, o estudo quantificou os impactos do programa frente às dinâmicas recentes do emprego, por meio de uma metodologia de regressão.
O levantamento concluiu que a cada dez pontos percentuais de aumento na proporção de transferências de renda sobre a massa de rendimentos, é constatada uma redução de 1,1 ponto percentual na taxa de participação dos trabalhadores no mercado de trabalho.
O impacto foi maior no setor de serviços básicos, onde a oferta de mão de obra é menos qualificada, e entre pessoas que vivem em regiões onde os salários são menores.
"As pessoas passaram a comparar as dificuldades de obter trabalho e, dependendo do custo, têm chegado à conclusão de que não vale a pena procurar emprego", explica o pesquisador Daniel Duque, autor do estudo.
Salários de menor qualificação aumentaram com auxílio e pandemia
Com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do IBGE, o estudo constatou uma redução de oferta de mão de obra para os serviços básicos, o que levou a um aumento dos rendimentos nesse tipo de trabalho.
"Com o fim da pandemia e o aumento da demanda por trabalho de baixa qualificação, os empregadores precisaram aumentar os salários para atrair trabalhadores", destaca Duque.
Mesmo com o aumento de salário, muitos trabalhadores não viram vantagem em entrar para o mercado de trabalho.
Avaliando as probabilidades de encontrar emprego e os custos de demissão, as pessoas estão precisando de mais incentivo para buscar emprego, acredita Duque. "O efeito na estrutura de participação dos trabalhadores deve permanecer estável no médio prazo", diz.
Programa de raízes liberais completou duas décadas
O Bolsa Família completou 20 anos em outubro de 2023, beneficiando 21,5 milhões de famílias com um valor médio de R$ 687. Criado por medida provisória no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o benefício condensou três programas sociais criados no governo Fernando Henrique Cardoso, (PSDB): o Bolsa Escola, o Bolsa Alimentação e o Auxílio Gás. Foi aprovada pelo Congresso em 2004, na forma da lei n.º 10.836.
Tucanos e petistas sempre brigaram pela autoria do maior programa de transferência de renda na história do Brasil. Mas seus alicerces têm raízes liberais, a partir dos estudos do economista Milton Friedman, da Escola de Chicago, mesmo referencial teórico do ex-ministro Paulo Guedes.
Por isso mesmo, o programa foi criticado e sofreu forte resistência na época de sua criação por uma grande parte do Partido dos Trabalhadores, que preferiam políticas públicas de transferências intermediadas pelo Estado, não diretamente na conta do trabalhador.
Benefício aumentou na pandemia
A partir de 2020, durante a pandemia de Covid-19, o governo de Jair Bolsonaro (PL) substituiu o Bolsa Família temporariamente pelo Auxílio Emergencial, no valor de R$ 600 mensais, que chegou a ser pago a mais de 60 milhões de pessoas em alguns meses.
Depois, em 2021, veio o Auxílio Brasil, sucessor do Bolsa Família, cujo benefício começou em R$ 400 mensais e em 2022 subiu para R$ 600.
No ano passado, com a posse de Lula, a lei n.º 14.601 restabeleceu o nome anterior do programa e acrescentou benefícios para famílias com crianças, mantendo o valor base no mesmo patamar.
Houve mudanças para estimular a busca do emprego, como, por exemplo, extinguir o corte imediato do benefício para quem consegue trabalho. O recém-contratado continua cadastrado no programa, recebendo um valor menor. Mas ainda não há estudo para saber os impactos desse novo formato.
Impacto no mercado não é necessariamente ruim
O impacto no mercado de trabalho é visto como um efeito colateral menor do programa. Samuel Pessôa, economista do Ibre, diz que que tais efeitos de transferência de renda são percebidos no mundo inteiro, e entre eles está o desestímulo ao emprego.
Um exemplo emblemático é o dos Estados Unidos, onde os benefícios por conta da pandemia dificultaram a reposição de mão de obra em diversas camadas salariais.
Embora possam ser minimizadas, essas consequências, na avaliação de Pessôa, não são necessariamente ruins, como se pode pressupor. É preciso, segundo ele, ponderar o custo de oportunidade dessas pessoas que estão saindo da casa para buscar trabalho.
"Sabe-se que essas pessoas que estão sendo retiradas do mercado já são parte de uma parcela pouco produtiva. Mas é possível que ela exerçam trabalho doméstico, muito importante para a sociedade. Por exemplo, vamos supor que a política esteja estimulando mães jovens a ficar mais em casa cuidando dos filhos. Isso não é ruim do ponto de vista social", acredita.
Ainda são necessários estudos para medir os benefícios e fazer uma análise normativa do programa, pondera o economista. "Embora a redução de oferta seja menor, o problema pode ser compensado com ganhos na outra ponta", diz.
Porém, pelo custo atual do programa, Pessôa defende que seu desenho seja aperfeiçoado. Por muitos anos, o Bolsa Família consumia cerca de de 0,45% do PIB. No ano passado, porém, correspondeu a 1,7% do PIB.
"Ele quase quadruplicou seu custo. Um projeto dessa magnitude tem possibilidades de aumentar sua eficácia e corrigir distorções", afirma.
Programa pode ter mais foco e diferenciações de benefícios
Vinícius Botelho, ex-secretário do Ministério de Desenvolvimento Social, lembra que o Bolsa Família visa proteger pessoas em situação de vulnerabilidade: "No seu formato original, os valores eram bem menores e mais focados em família de baixíssima renda".
Em 2019, as famílias que participavam do Bolsa Família recebiam, em média, 20% do salário mínimo. Hoje, recebem quase 50% do piso nacional, de R$ 1.412.
Botelho defende uma maior focalização dos benefícios, com valores diferenciados para cada família, conforme o grau de vulnerabilidade. "Redistribuir os valores de benefício é uma questão complexa, mas a gente tem como melhorar", diz.
A diferenciação dos benefício, segundo o economista, poderia ter impacto na participação no mercado de trabalho. Mesmo assim, Botelho ressalta que o Bolsa Família é um dos mais bem sucedidos programas de transferência de renda do mundo e que é preciso tomar cuidado com mudanças drásticas. "É preciso reconhecer que a gente, na comparação internacional, está numa condição relativamente boa", diz.
Estudo realizado por FGV, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e Banco Mundial, em parceria com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, aponta que 3 milhões de famílias beneficiárias do programa Bolsa Família deixaram a pobreza entre janeiro e setembro de 2023.
Segundo o trabalho, em janeiro de 2023 havia 4,5 milhões de famílias pobres entre os 21,7 milhões de famílias inscritas no programa. Em setembro, o número de famílias pobres havia baixado para 1,5 milhão, entre 21,2 milhões de beneficiários. O estudo usou como linha de pobreza o valor de R$ 218 mensais por pessoa.
Na avaliação de Samuel Pessôa, no entanto, a redução da pobreza não depende unicamente de transferência de renda, mas de um conjunto de medidas e politicas públicas, entre elas a melhoria da produtividade e qualificação dos trabalhadores. "Isso precisa ser feito com a melhoria do ensino médio no país", aponta.