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O governo federal reservou R$ 1,7 bilhão no Orçamento da União para a concessão de reajuste a servidores federais neste ano. Em várias ocasiões o presidente Jair Bolsonaro (PL) sinalizou que o aumento tende a ser exclusivo para forças de segurança, ao mesmo tempo em que promete aumentar as remunerações de todo o funcionalismo em 2023. Mas, por estarmos em ano de eleição, o arcabouço jurídico brasileiro tem amarras que podem dificultar o cumprimento das promessas.
Se optar por conceder algum reajuste neste ano eleitoral, Bolsonaro poderá fazê-lo até, no máximo, 180 dias antes do fim do mandato, segundo o que determina o inciso II do artigo 21º da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). A data-limite para conceder o aumento, nesse caso, é 4 de julho.
Outra norma que impõe limites a reajustes salariais para servidores em 2022 é a Lei Eleitoral (9.504/1997). Ela impede, segundo o inciso VIII do artigo 73.º, "revisão geral da remuneração dos servidores públicos que exceda a recomposição da perda de seu poder aquisitivo ao longo do ano da eleição" no período que vai de 180 dias antes da eleição até a posse dos eleitos. Nesse caso, a data-limite é 4 de abril. O motivo da restrição, segundo a legislação, é que tal aumento pode "afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos". A ideia é evitar que o eleitor seja influenciado.
No entanto, a própria redação desse dispositivo abre uma brecha para reajustes. Como ela impede aumento geral que exceda a perda de poder aquisitivo, entende-se que o governo pode conceder aumentos limitados à recomposição das perdas salariais provocadas pela inflação. O que fica vedado, portanto, é o aumento real, acima da inflação.
A promessa de Bolsonaro de promover algum reajuste em 2022 já teve várias idas e vindas. Nas primeiras declarações públicas, ainda no ano passado, o presidente chegou a dizer que o aumento seria para todo o funcionalismo, "sem exceção". Mas o Orçamento apertado o levou a mudar o discurso na sequência e limitar o número de beneficiados.
Mais recentemente, na última sexta-feira (11), Bolsonaro afirmou que, se não houver "entendimento" por parte das demais categorias do funcionalismo, o reajuste a policiais e agentes penitenciários ficará para 2023. "Se houver entendimento por parte dos demais servidores – pois alguns ameaçam greve etc. –, pretendemos conceder essa recomposição aos policiais federais, PRF [Polícia Rodoviária Federal] e agentes penitenciários", disse. "Se não houver entendimento, a gente lamenta e deixa para o ano que vem."
A maioria das categorias mobilizadas reivindica pelo menos 20% de recomposição salarial, considerando a perda de poder aquisitivo de janeiro de 2019 a janeiro de 2022, e tendo o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) como referência. Mas há categorias que pedem ainda mais – 28,15% – por considerarem a inflação acumulada de janeiro de 2017 a janeiro de 2022.
Em caso de descumprimento das determinações da Lei Eleitoral, as punições impostas pelo TSE ao presidente poderiam ir de multa à possibilidade de cassação do registro de candidatura, além da aplicação da Lei de Improbidade Administrativa. Os limites valem não apenas para o presidente da República, mas para outros agentes públicos, como os presidentes do Congresso Nacional e representantes do Poder Judiciário.
Lei sancionada por Bolsonaro veda reajuste a ser pago após atual mandato
Ao mesmo tempo em que não bateu o martelo sobre o reajuste em 2022, Bolsonaro tem prometido aumento para o funcionalismo em 2023. "Tendo em vista que devemos ter uma excelente arrecadação este ano, por ocasião da feitura do Orçamento de 2023 nós vamos atender com percentual bastante razoável todos os servidores do Brasil", disse Bolsonaro no fim de janeiro, em entrevista à "TV Record".
Neste caso, o limite é mais claro e foi incluído em 2020 na LRF por iniciativa do próprio governo Bolsonaro. A legislação proíbe, no inciso III do artigo 21.º, que o chefe do Executivo preveja aumento de gastos dessa natureza com parcelas a serem pagas após o fim de seu mandato, que se encerra em 31 de dezembro. A regra vale mesmo se o presidente for reeleito.
O dispositivo foi incluído na LRF pela lei complementar 173, que criou o "Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19)" e foi sancionada por Bolsonaro em 27 de maio de 2020.
"Não adianta, por exemplo, o agente público querer dar um reajuste menor neste ano e já garantir reajuste para anos seguintes porque isso não será válido e vai confrontar a Lei de Responsabilidade Fiscal", diz Daniel Curi, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) e consultor do Senado Federal.
A limitação foi elogiada pelo chefe da Assessoria Especial de Assuntos Estratégicos do Ministério da Economia, Adolfo Sachsida, em conversa com jornalistas na semana passada. "A última parcela de um aumento salarial concedido pelo governo Temer teve de ser paga pelo nosso governo. Mas hoje o governo só pode dar reajuste salarial dentro do seu mandato. Obtivemos consenso para isso. É uma melhora das regras fiscais", afirmou Sachsida.
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Lei Eleitoral abre brecha para reajustes pontuais e acima da inflação no ano eleitoral
Segundo especialistas, a redação da Lei Eleitoral permite que o presidente conceda reajustes de salário pontuais, mesmo dentro do período de 180 dias que antecede as eleições e inclusive acima da inflação, uma vez que a norma veta explicitamente apenas a "revisão geral da remuneração dos servidores que exceda a recomposição da perda de seu poder aquisitivo ao longo do ano da eleição".
Em mais de uma ocasião Bolsonaro anunciar reajuste a servidores federais da área de segurança, mas sem mencionar qual seria o tamanho do aumento. Esse aceno motivou outras categorias do funcionalismo a paralisar atividades e ameaçar greve geral, também em busca de aumento de salário.
O entendimento de que a Lei Eleitoral dá margem para reajustes localizados foi corroborado em parecer elaborado pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). O documento teria sido solicitado pelo Ministério da Economia no fim de 2021 e foi revelado pelo jornal "Estado de S. Paulo".
A princípio, a Economia não pretendia reservar recursos para nenhum reajuste salarial, mas teve de atender a pedido do próprio Bolsonaro e solicitou a reserva de recursos para isso no Orçamento de 2022.
Segundo a procuradoria, o texto dá brecha para "correções por categoria" – e eventualmente aumentos reais, acima da inflação – no prazo de 180 dias antes da eleição.
"Apesar de o tema comportar interpretações diversas, podemos afirmar que a atual jurisprudência do TSE se posiciona no sentido de que o inciso VIII do art. 73 da Lei nº 9.504, de 1997, não proíbe, no período que medeia os 180 dias que antecedem à realização das eleições e a posse dos eleitos, na circunscrição do pleito, a revisão setorial ou por carreiras da remuneração dos servidores públicos que exceda a recomposição da perda de seu poder aquisitivo ao longo do ano da eleição", diz o parecer da PGFN revelado pelo jornal "Estado de S. Paulo".
Uma outra interpretação dada à lei se refere ao percentual da inflação permitido. "Se o presidente mandar projeto de lei prevendo revisão pela inflação do ano da eleição, não vai estar cumprindo a revisão geral. Poderia se olhar para a perda do ano todo, ou seja, os 12 meses anteriores, e não quatro meses [até abril]", avalia o consultor legislativo Luiz Alberto dos Santos, sócio da Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas.
"Revisão geral anual" de salários de servidores está prevista na Constituição
Há entendimentos que vão ainda mais longe, no sentido de que a revisão anual dos salários não se submete a nenhuma dessas leis, já que se trata de uma garantia constitucional, e a Carta Magna se sobrepõe às demais legislações. A Constituição Federal, no inciso X do artigo 37º, assegura a recomposição inflacionária anual do salário dos servidores federais, em "revisão geral anual", e a atrela à aprovação de uma lei a ser enviada ao Congresso Nacional.
"A revisão geral está acima da LRF. Inclusive, a lei reconhece isso, quando, por exemplo, dispensa a aplicação do parágrafo 1.º do artigo 17.º, que trata das despesas obrigatórias de caráter continuado derivado de lei", explica dos Santos.
De modo geral, a LRF exige que qualquer ato que resulte em aumento de despesa "derivada de lei" tenha estimativa de impacto e demonstração da origem de recursos, entre outras coisas. "Essa é uma das principais regras da LRF, mas não se aplica aos serviços da dívida nem ao reajustamento da remuneração para cumprir a revisão geral, segundo o parágrafo 6.º do mesmo artigo", diz o consultor legislativo.
Santos observa que, embora uma revisão anual do salário dos servidores públicos seja garantia constitucional e deva ser feita por meio de projeto de lei, o dispositivo não tem sido cumprido a rigor.
"Desde que foi incorporado na Constituição para garantir essa anualidade, após o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ter congelado os salários dos servidores entre 1995 e 1998, o cumprimento da norma acabou se tornando uma miragem, até mesmo por força da própria leniência do STF com as manobras que foram adotadas para esse fim", afirma.
Segundo ele, a vinculação do reajuste à aprovação de lei veio após episódios de concessão de melhorias salariais e vantagens sem preocupação com o cumprimento de regras de responsabilidade fiscal. "Certas regras foram surgindo com o objetivo de impedir leniência, abusos, descontroles", diz.
Para Daniel Curi, da IFI, será complexo usar interpretações da LRF e Lei Eleitoral favoráveis ao reajuste quando se tem uma situação fiscal desafiadora.
"Terá muita pressão por reajuste, mas os normativos serão lembrados, especialmente porque estamos em uma situação fiscal pouco confortável", diz. "O desemprego está bastante elevado, o crescimento [do PIB] neste ano deve ficar perto de zero. O contexto econômico e social vai influenciar nas discussões. Não sabemos se interpretações favoráveis ao reajuste vão prevalecer."