A ausência de regras para o cancelamento dos contratos de venda de imóveis na planta coloca o Brasil numa posição que destoa de outros países, onde o distrato quase sempre é proibido. E nos casos em que a rescisão do negócio é permitida, os consumidores não são ressarcidos pelos valores já pagos na fase de obras, ficando, inclusive, sujeitos a processos.
As informações constam em estudo produzido pelo analista de construção civil do banco BTG Pactual, Gustavo Cambaúva. “Do ponto de vista regulatório, o Brasil está a quilômetros de distância de outros países”, descreve o analista no relatório.
Siga a Gazeta do Povo no LinkedIn
O levantamento compara as regras para distratos em 11 países desenvolvidos e emergentes: Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, Portugal, México e Reino Unido.
Apenas no Brasil e na Austrália, o distrato é permitido. Nos demais, o comprador e o incorporador são obrigados a honrar o contrato de comercialização. Caso o acordo seja rompido, os compradores australianos perdem o valor já pago. Só os brasileiros recebem devolução.
O relatório aponta também que em todos os países, com exceção do Brasil, os compradores que rescindem o negócio estão sujeitos a processos, em que a pena é reassumir a compra ou compensar os gastos da empresa com a venda desfeita.
“Uma análise das diferenças em relação a outros países mostra que a decisão judicial no Brasil sobre cancelamentos é incerta e muito mais pró-consumidor”, descreve Cambaúva.
Vale ponderar, no entanto, que o mercado imobiliário tem particularidades em cada país. No Brasil, por exemplo, a duração da obra gira em torno de 18 a 36 meses, enquanto outros países têm ciclo mais curto, o que ameniza imprevistos financeiros que geram os distratos – como perda de emprego ou elevação das taxas de juros do financiamento bancário.
Regulamentação
Empresários, membros do governo e representantes dos consumidores têm discutido a criação de regras para os distratos, mas não há consenso sobre o assunto. Três reuniões já foram feitas neste ano, mas ainda sem desfecho, e não há novo encontro marcado.
Uma das propostas na mesa é que o incorporador retenha como multa até 10% do valor do imóvel em caso de distrato, até o limite de 90% do montante pago pelos consumidores. Em um imóvel de R$ 500 mil, por exemplo, a empresa poderia reter até R$ 50 mil. Já se o consumidor pagou apenas R$ 30 mil até a rescisão, a multa ficaria em R$ 27 mil.
Se essa proposta for aprovada, o incorporador só obterá a retenção máxima (10% do valor do imóvel) após 12 meses de contrato. Antes disso, a multa será proporcionalmente inferior, segundo cálculo do analista do BTG Pactual, que considera o fluxo de pagamento.
Distorções
O advogado Carlos Ferrari, do escritório NF&BC, pondera que os contratos no Brasil são originalmente irrevogáveis e irretratáveis. Entretanto, o judiciário brasileiro se aproximou das decisões que buscam resguardar o lado considerado hipossuficiente nas relações – no caso da compra do imóvel, trata-se do consumidor.
Durante o boom do mercado, entre oito a dez anos atrás, surgiram os primeiros casos de distratos. Na ocasião, as empresas tinham grande facilidade na revenda, além de lucrarem com a forte valorização das moradias, o que contribuiu para a inclinação pró-consumidor do Judiciário, avalia Ferrari. “Esse efeito gerou uma jurisprudência que foi criada aos poucos e passou desavisada”, observa. “Quando o mercado inverteu, isso se mostrou danoso aos incorporadores e tomou um volume desproporcional.”
Em 2016, 40,9 mil unidades tiveram as vendas canceladas até novembro, o equivalente a 44% das vendas totais no período, segundo a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc). O vice-presidente da entidade, Claudio Carvalho, avalia que a ausência de regras alimenta um clima de insegurança jurídica e prolonga os danos financeiros para os incorporadores, criando um risco para todos os envolvidos na cadeia. “Do jeito como está, o mercado corre um risco sistêmico. As empresas não vão aguentar”, alerta.
O especialista em mercado imobiliário Alberto Mattos, do escritório Penachio, Moroni Câmara, Mattos e Fittipaldi (PMMJ), também entende que há uma postura pró-consumidor da Judiciário, onerando as empresas. “A quebra da expectativa de fluxo financeiro durante a obra aliada à necessidade de devolução dos valores ao cliente, corrigido e com juros, compromete o planejamento das empresas”.
Mattos acrescenta que a devolução de recursos já usados na obra colocam em risco a continuidade do projeto. “A consequência é que estes custos e riscos serão repassados aos próprios consumidores no próximo ciclo de desenvolvimento de um projeto, encarecendo ainda mais a compra de um imóvel”, complementa.
Já na visão de Marcelo Tapai, advogado especialista em direitos do consumidor, o modelo de incorporação no País é favorável às empresas, uma vez que boa parte das obras é feita com recursos obtidos junto aos compradores das unidades na planta. “O risco é todo do consumidor, pois se não pagar as parcelas da obra, não efetiva a compra e ainda perde parte do dinheiro ‘emprestado’ para a empresa”, afirma. “O incorporador é responsável por levantar os recursos, então deve assumir os riscos do distrato”.
Julgamento do Marco Civil da Internet e PL da IA colocam inovação em tecnologia em risco
Militares acusados de suposto golpe se movem no STF para tentar escapar de Moraes e da PF
Uma inelegibilidade bastante desproporcional
Quando a nostalgia vence a lacração: a volta do “pele-vermelha” à liga do futebol americano
Reforma tributária promete simplificar impostos, mas Congresso tem nós a desatar
Índia cresce mais que a China: será a nova locomotiva do mundo?
Lula quer resgatar velha Petrobras para tocar projetos de interesse do governo
O que esperar do futuro da Petrobras nas mãos da nova presidente; ouça o podcast