Para além dos riscos financeiros e da discussão sobre o viés ideológico na tomada de decisões, o anúncio da intenção do governo federal de financiar a construção de um gasoduto na Argentina para o escoamento do insumo ao mercado brasileiro expõe uma contradição, segundo especialistas do setor.
Embora o empreendimento possa de fato beneficiar o Brasil com uma alternativa à importação do combustível boliviano, o investimento poderia ser mais vantajoso para o país caso fosse direcionado à infraestrutura de transporte de gás em território nacional.
Hoje quase três quartos do gás natural produzido no Brasil vêm da exploração da camada do pré-sal, por meio de plataformas offshore. Praticamente metade do que é extraído, no entanto, acaba reinjetado justamente por falta de estrutura para escoamento.
De acordo com a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), em média 2,07 bilhões de metros cúbicos, o equivalente a 49,6% de toda a produção brasileira do combustível, foram devolvidos aos poços mensalmente em 2022. A média mundial de reinjeção de gás natural é da ordem de 20%.
A redução pela metade do volume de gás reinjetado viabilizaria investimentos da ordem de R$ 98 bilhões em novos projetos das indústrias química, petroquímica e de fertilizantes, que utilizam o composto de hidrocarbonetos como matéria-prima, segundo a Coalizão pela Competitividade do Gás Natural Matéria-Prima.
A entidade, que reúne representantes desses setores e da indústria de gás natural, calcula que o montante permitiria um aumento de R$ 402 bilhões no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro nominal, além de gerar 2,8 milhões de novos empregos, aumentar em R$ 54 bilhões a massa salarial e ampliar em R$ 9 bilhões a arrecadação do Estado por meio de impostos. Na semana passada, os dados foram apresentados ao ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, segundo reportou a revista especializada Megawhatt.
"O Brasil é um país que tem a rede de gasodutos muito ruim, com poucos quilômetros de vias de transporte se comparado a outros países, inclusive à própria Argentina", diz Pedro Rodrigues, sócio e diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), consultoria do setor de energia.
Segundo o CBIE, a malha dutoviária do Brasil para transporte de gás natural tem cerca de 9,5 mil quilômetros, enquanto a Argentina tem 16 mil quilômetros de dutos para o combustível, embora seu território corresponda a um terço do brasileiro. "Então será que a prioridade de investimento do BNDES deveria ser o gasoduto da Argentina? Será que não há outras infraestruturas no Brasil para se investir primeiro?", questiona Rodrigues.
Ele ressalta que, além das rotas de escoamento da produção offshore, o país poderia investir em uma rede para interiorização do combustível. "Hoje só 2% da população brasileira tem acesso a gás natural residencial, enquanto 98% das pessoas ainda utilizam somente o botijão de gás", diz.
A lei que privatizou a Eletrobras prevê a construção de cinco novos gasodutos de transporte de gás natural com o objetivo de interiorizar o acesso ao insumo e anteder à demanda de novas termelétricas. Os projetos incluídos no Plano Indicativo de Gasodutos de Transporte (PIG) da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) somam aproximadamente mil quilômetros de extensão, ao custo de R$ 20,5 bilhões.
BNDES deve financiar R$ 4,2 bilhões para construção de gasoduto argentino
As obras da primeira etapa da construção do gasoduto Néstor Kirchner, na Argentina, estão em andamento desde 2021 e consumiram até agora o investimento de 180 bilhões de pesos, o equivalente a R$ 4,9 bilhões na cotação atual.
Em dezembro passado, o governo argentino anunciou que o BNDES financiaria US$ 689 milhões (cerca de R$ 3,49 bilhões na cotação atual) para a construção da segunda etapa do gasoduto, conforme noticiou a imprensa local.
Segundo informou esta semana o jornal O Estado de S.Paulo, no entanto, o valor deve chegar a US$ 820 milhões (R$ 4,16 bihões). Detalhes como sistema de taxas, prazos e garantias devem ser tratados em uma viagem do ministro da Economia argentino, Sergio Massa, ao Brasil no início de fevereiro.
O segundo trecho do gasoduto permitira o escoamento do gás extraído da reserva de Vaca Muerta, na bacia de Neuquén, na Patagônia, até a fronteira com o Brasil. O BNDES entraria com recursos para financiar a fabricação de tubos por uma empresa brasileira, que participaria de uma licitação para a obra.
Mais de um terço do gás natural consumido no Brasil é importado
Enquanto reinjeta praticamente metade do gás natural que é extraído dos campos do pré-sal, o Brasil importou, em média, 24,79 milhões de metros cúbicos do combustível por dia em 2022, segundo dados do Boletim de Acompanhamento da Indústria de Gás Natural, do Ministério de Minas e Energia, atualizados até outubro. O volume corresponde a 34,2% de toda a oferta do insumo no país no período (72,45 milhões de metros cúbicos).
Do total importado, 69,6% foi proveniente da Bolívia, enquanto o restante é importado na forma de Gás Natural Liquefeito (GNL) de países como Estados Unidos, Reino Unido, Nigéria, Angola, Argentina, Singapura, Catar, Trinidad e Tobago e Suíça. Nesse estado, o insumo é transportado em navios e precisa passar por um processo de regaseificação para ser utilizado.
A maior parte da demanda do produto no país (60,6%) é para utilização em refinarias, fábricas de fertilizantes e uso do gás como matéria-prima industrial. Cerca de 23% é consumido por termelétricas, para geração de energia, e outros 9,2% como combustível automotivo. O uso doméstico corresponde a apenas 2,1% da demanda do gás natural.
"Quando a gente fala de oferta de gás natural, qualquer oferta que o Brasil tenha de um produto mais barato é benéfica. Aumentar a oferta de gás, do ponto de vista do mercado, é bom", diz Pedro Rodrigues, do CBIE. "Mas o projeto tem algumas interrogações que a gente tem de fazer."
Além da contradição de se investir em um gasoduto argentino em meio a um cenário de escassez de estrutura de transporte de gás no próprio Brasil, há questionamentos em relação ao impacto socioambiental do empreendimento, que contrariariam o compromisso do atual governo brasileiro em relação à defesa do meio ambiente e dos povos originários.
Comunidades do povo indígena Mapuche e pequenos agricultores que habitam a região de Vaca Muerta estariam entre as populações mais afetadas, segundo a organização não-governamental 350.org, que critica o anúncio do governo brasileiro.
Segundo a entidade, a província de Neuquén,embora seja um centro da exploração de petróleo e gás na Argentina, continua a ser uma das mais pobres e endividadas do país. "Nos municípios onde o fracking é extraído, há milhares de famílias sem acesso, inclusive, ao próprio gás obtido na região, que dependem de lenha para aquecer suas casas", diz nota da organização.
A reserva de Vaca Muerta é uma formação geológica rica no chamado shale gas, ou gás de xisto, um tipo de rocha com aspecto folheado que abrigar os combustíveis fósseis em frestas. O processo para extração de gás desse tipo de formação é conhecido como "fracking" (de "hydraulic fracturing"), porque exige o fraturamento do solo e a inserção de água e outros compostos para liberação dos hidrocarbonetos.
A técnica é criticada por ambientalistas por ser considerada danosa ao meio ambiente e à saúde da população que vive nos arredores dos campos de exploração. Diversos países proíbem o procedimento, que não é regulamentado no Brasil.
Rodrigues, do CBIE, diz que avanços tecnológicos permitiram mitigar seus riscos ambientais. "O que existe nesse aspecto é essa incongruência: no Brasil a gente tem shale gas, só que por questões ambientais a gente não explora esse potencial. Mas importamos gás dos Estados Unidos que é de shale e estamos ajudando a construir um duto para trazer esse gás."
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