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Em questão de meses, o Brasil conseguiu reverter a situação de pobreza e extrema pobreza que perdurava por anos. E fez isso contrariando todas as expectativas, na esteira de uma recuperação lenta da recessão e em meio à pandemia da Covid-19. Esse resultado foi obtido graças ao pagamento do auxílio emergencial, que custará R$ 322 bilhões à União. O problema é que o benefício acaba ao fim de 2020, e a mera redução de seu valor já fez com que os indicadores de pobreza voltassem a crescer.
O país encerrou 2019 com uma diminuição da proporção de pobres (24,8%) e estabilidade na de extremamente pobres (6,5%) em relação ao ano anterior. De acordo com a Sínteses dos Indicadores Sociais (SIS), do IBGE, eram 51,7 milhões de brasileiros que viviam com menos de US$ 5,50 por dia e 13,7 milhões com renda inferior a US$ 1,90. Depois que o pagamento do auxílio emergencial começou, esses números encolheram significativamente.
O pesquisador Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV), calculou o impacto do auxílio emergencial nos índices de pobreza ao longo dos meses a partir dos dados da Pnad Covid, do IBGE. Entre abril e julho, o cenário foi de redução acentuada tanto na quantidade de pobres quanto na de extremamente pobres. Em agosto, houve estabilização e a partir de setembro, com a redução do pagamento do auxílio emergencial, os índices voltaram a crescer.
A tendência é de que esse avanço na pobreza siga na mesma toada em 2021. O principal desafio é que não existe uma ação que acomode tanto os tradicionais beneficiários do programa Bolsa Família, principal programa de transferência de renda do governo federal, quanto as pessoas que receberam o auxílio emergencial e continuarão precisando de alguma assistência depois que ele acabar.
As propostas do governo para reformular o Bolsa Família, com a criação do Renda Brasil ou Renda Cidadã, caíram por terra. Além disso, a equipe econômica avalia que não será necessário prolongar o auxílio emergencial porque, em sua avaliação, essas pessoas serão absorvidas na recuperação do mercado de trabalho.
Por isso, a avaliação de Duque é de um 2021 difícil nessa área. “O ideal teria sido o governo ter aprovado uma expansão da política social, seja unificando benefícios para focalizar melhor o gasto público, seja alocando recursos de outras áreas, como pessoal, que teriam economia com aprovação de reformas, como a administrativa e a PEC Emergencial. No entanto, nada disso foi feito, de modo que podemos esperar, sim, um aumento relevante de pobreza mesmo em relação ao período anterior à pandemia”, alerta.
A evolução da pobreza no país
Um breve retrospecto da situação da pobreza no país ajuda a entender melhor o que ocorreu em 2020. Os dados da SIS, do IBGE, mostram uma redução relevante desses indicadores entre 2012 e 2014. Isso corrobora a avaliação que já foi feita por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que mostraram que o programa Bolsa Família conseguiu reduzir a extrema pobreza em 25% e a pobreza em 15% no país nos seus primeiros 15 anos. A partir de 2014, no entanto, a recessão profunda fez com que esses indicadores voltassem a crescer até 2018.
Em 2019, a diminuição da proporção de pobres e a estabilidade no indicador dos extremamente pobres foi obtida sem grandes mudanças na política permanente de transferência de renda, ainda que o governo tenha instituído, apenas naquele ano, o pagamento do 13.º do Bolsa Família. Ainda assim, o ano foi marcado por crescimento tanto no número de famílias recebendo o benefício quanto na fila de espera por ele.
Para 2020, o governo tinha projetado, no Orçamento, uma redução na quantidade de pessoas que receberiam o Bolsa Família – seriam apenas 13,2 milhões de famílias, número que se revelou subestimado ainda antes da pandemia. Com as restrições impostas pelas medidas de isolamento, o quadro piorou.
O governo agiu rápido em algumas ações de mitigação, principalmente no pagamento do auxílio emergencial, que acabou provocando um recuo inesperado nos índices de pobreza e extrema pobreza no país. O volume de dinheiro aplicado na ação, que deve totalizar R$ 322 bilhões, é muito significativo – equivale a praticamente dez anos de Bolsa Família.
Se o Bolsa Família custa em torno de R$ 30 bilhões ao ano, o auxílio emergencial representou um gasto R$ 50 bilhões por mês, com bolsas iniciais de R$ 600 (que poderiam chegar a R$ 1,2 mil, no caso de mulheres chefes de família) ante uma média de menos de R$ 200 por mês no Bolsa Família. A redução da pobreza foi uma consequência direta desse investimento. Mas não é uma retração permanente.
De acordo com os cálculos, em julho, a proporção de brasileiros extremamente pobres foi de 2,3%, o que indicava 4,8 milhões de pessoas nessa condição, e os pobres somavam 38,9 milhões, ou 18,4% da população. Foi neste mês que o valor médio do auxílio emergencial (gasto total, dividido pelo número de beneficiários) foi mais elevado: R$ 951,74.
O problema é que já a partir de setembro, ainda de acordo com as contas de Duque, o cenário começou a mudar. A diminuição do auxílio emergencial – o valor básico passou de R$ 600 para R$ 300 – reduziu consideravelmente a média por beneficiário, que passou a R$ 708,38.
Isso afetou diretamente o indicador de extrema pobreza, que avançou para além do registrado no início da pandemia. Nesse último levantamento, já eram 9,3 milhões de brasileiros vivendo na extrema pobreza, o que representa 4,4% da população. O contingente de pobres também aumentou, ainda que permaneça abaixo do patamar registrado no início da pandemia.
Duque também verificou que o pagamento do auxílio emergencial foi determinante para uma redução da desigualdade. O índice de Gini – instrumento usado para medir a concentração de renda, que aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e mais ricos – apresentou melhora relevante quando adicionado o impacto do auxílio. Até 2019, ainda que tivesse registrado queda, o Brasil era o nono país mais desigual do mundo, de acordo com relatório do Banco Mundial.
Em 2021, desafio será o emprego
Apesar desses avanços, 2021 começará sem prorrogação do auxílio emergencial e com o Bolsa Família nos moldes atuais. O orçamento, que também será aprovado pelo Congresso apenas no ano que vem, prevê quase R$ 35 bilhões, para atender 15,2 milhões de famílias, o que vai manter o benefício médio no patamar dos R$ 190. Ainda que sondagens apontem que mesmo os mais pobres conseguir poupar alguma coisa em 2020, é difícil imaginar como essa pequena poupança vai segurar a situação de consumo em 2021.
A tendência é de termos mais pessoas elegíveis para o Bolsa Família, que não terá recursos para atender a todos. A população mais pobre já é mais vulnerável no que diz respeito ao mercado de trabalho, pois ocupa as piores posições e tem menor escolarização.
O aumento dos casos de contaminação da Covid-19 no país pressiona o cenário de incerteza da retomada e devem atrasar o restabelecimento de vários postos de trabalho que essas pessoas costumam ocupar, principalmente no mercado informal. Além disso, a alta da inflação agora no final de ano pressiona ainda mais os mais pobres, porque indica a elevação dos preços dos itens mais básicos da cesta de consumo desse grupo, como alimentos, gás e energia elétrica.