Afundada em uma das piores crises econômicas de sua história, a Grécia chamou uma brasileira para analisar a dívida pública do país. Maria Lúcia Fattorelli é especialista em administração tributária pela FGV e trabalhou como auditora da Receita Federal por quase 30 anos.
O convite veio em abril, quando a presidente do Parlamento grego, Zoe Konstantopoulou, constituiu uma comissão – comandada pelo cientista político belga Éric Toussaint – para auditar a dívida grega.
Fattorelli foi escolhida para o grupo por sua experiência na coordenação da associação de voluntários Auditoria Cidadã da Dívida, que analisa a dívida brasileira, externa e interna, em todos os seus níveis (federal, estadual e municipal).
Presente para grego
No caso da Grécia, a comissão apresentou um relatório preliminar em junho. Foram analisadas as dívidas contraídas a partir de 2010 – auge da crise financeira iniciada em 2007 –, quando teve início a interferência da troika (Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia) no país.
ETAPAS DA AUDITORIA
O trabalho de auditoria da dívida pública é dividido em três etapas, segundo Maria Lúcia Fattorelli.
A primeira tem como objetivo reunir e expor os números relativos ao montante da dívida contraída, ao quanto já foi pago em títulos e amortizações e aos fatores que influenciaram no seu crescimento. Depois, são analisados os documentos que dão base a esses empréstimos, verificando se todos os processos e as exigências legais foram respeitados. Por fim, um relatório é produzido com o diagnóstico da situação.
“O relatório de auditoria não é um texto de opinião. Tudo o que escrevemos ali tem que estar respaldado em documentos”, diz Fattorelli, que, no entanto, enfatiza que a comissão de auditoria não tem nenhum poder de decisão sobre os passos a serem dados pelo governo depois.
Segundo Fattorelli, um dos principais problemas encontrados pela auditoria foi a geração de dívida pública por meio da transferência de ativos tóxicos – ou seja, de títulos desmaterializados, normalmente não admitidos para comercialização em Bolsas de Valores, cuja tendência é a desvalorização contínua – de bancos privados para países europeus.
Essas transações ocorreram em 2010 por meio da compra e troca de títulos pelo BCE (Banco Central Europeu) e em 2012 pelo Fundo Europeu de Estabilização Financeira (em inglês, European Financial Stability Facility - EFSF), criado por imposição do FMI em 2010, que tem os países europeus como acionários e garantidores.
Assim, os “pacotes de resgate” ofertados à Grécia, principalmente pelo EFSF, consistiriam não em dinheiro passível de investimento na economia, mas na transferência desses ativos tóxicos.
Esses títulos, por sua vez, passavam pelo Banco Central grego, que registrava a dívida pública, e em seguida eram entregues a um fundo privado criado na Grécia também por imposição do FMI – denominado HFSF (Hellenic Financial Stability Fund) – que os utilizou para comprar papéis sem lastro emitidos por bancos privados gregos.
Ao final, de acordo com a auditora, o governo grego ficou com esses papéis podres, sem lastro, e os bancos privados com os papéis advindos do EFSF, que detinham as garantias dos países europeus.
EQUADOR
Pouco conhecido, o trabalho de auditoria de dívidas públicas já foi feito por uma comissão, da qual também participou Fattorelli, no Equador entre 2007 e 2008.
As conclusões do relatório final dos auditores fizeram o então recém-eleito presidente Rafael Correa suspender parte do pagamento de dívidas do país que venceriam em 2008, após a comprovação de que algumas delas provinham de fraudes e ilegalidades.
“Encontramos simples notas promissórias, sem contrato, para a contração de dívidas. Suspeitamos que eram dívidas para financiar gastos da ditadura militar -há uma definição jurídica para isso, dívidas ‘odiosas’, que vão contra o interesse da população”, disse Fattorelli sobre a experiência.
Segundo ela, a atitude do presidente Correa de suspender a dívida permitiu o aumento dos investimentos públicos nas áreas de educação, saúde e infraestrutura. No ano passado, o país cresceu 4,9% (o Brasil cresceu 0,1% e a Grécia retraiu 0,2%).
Reembolso
Apesar de não ter recebido reais recurso financeiros, segundo os auditores, o governo grego hoje precisa reembolsar tais “dívidas” com recursos efetivos, por meio de cortes de despesas sociais e de investimentos públicos e pela privatização de bens públicos.
Também estão sendo averiguadas, segundo a auditora, denúncias de que o déficit orçamentário do país foi superestimado – a justificativa para a interferência da troika na Grécia em 2010.
“É claro que governos gregos anteriores também cometeram erros de gestão financeira, mas esses erros não justificam a validação de uma dívida gerada indevidamente, com fortes indícios de ilegalidade e ilegitimidade”, diz Fattorelli.
Futuro
Segundo a auditoria, a aceitação pelo governo grego de um novo plano de resgate da União Europeia, após plebiscito no dia 5 de julho rejeitar uma proposta de socorro financeiro dos credores internacionais, foi “lastimável”.
“O acordo só fará agravar a já complicadíssima situação da economia grega, aprofundando ainda mais a crise humanitária. Ele é insustentável, e em pouco tempo haverá outra crise ainda mais difícil.”
De acordo com ela, a renúncia do premiê grego, Alexis Tsipras, anunciada nesta quinta (20), é decorrente da perda de sua legitimidade frente ao próprio partido, o Syriza, e também à sociedade grega, após essa decisão.
O relatório final de auditoria da dívida grega tem previsão de divulgação para setembro de 2016.
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