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Problemas expõem risco de bolha
A alta da inadimplência no setor automotivo fez surgir no mercado a dúvida se o calote não é produto de uma bolha de crédito, formada a partir da explosão dos empréstimos com prazos longos entre 2008 e 2010. E se essa bolha não estaria "murchando" agora.
A maior parte dos empresários do setor admite que houve exagero na concessão do crédito por prazos tão longos. Mas o problema não se limita a isso. A questão é central é que o consumidor se endividou também com outros compromissos eletrodomésticos, móveis, casa nova.
"O crédito no Brasil provavelmente vive um cenário de bolha. E essa seria a terceira fase, com a tentativa maior de bancos e consumidores de renegociar as dívidas", diz o economista Luciano DAgostini, professor da FAE. Ele prevê que a inadimplência do setor deve permanecer acima da média histórica até o fim do ano.
Além do crédito espichado, incentivos como a redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) fizeram crescer as vendas e empolgaram o consumidor.
Os primeiros sinais de preocupação do governo com o rápido crescimento do crédito vieram no fim de 2010, quando o Banco Central adotou uma série de medidas macroprudenciais, que, dentre outros efeitos, fizeram encolher os prazos de financiamento e restringiram a venda sem entrada de automóveis.
As medidas foram retiradas em 2011, mas, com a inadimplência subindo, os bancos não voltaram ao ritmo anterior. Instituições bastante ativas nesse mercado, como BV Financeira adquirida pelo Banco do Brasil e Itaú reduziram bastante suas posições nos últimos meses por conta dos atrasos nos pagamentos.
Para a Associação Nacional das Empresas Financeiras das Montadoras (Anef), o cenário preocupa porque até o momento não foi verificada uma reversão na tendência das curvas de inadimplência no curto prazo.
O recorde na inadimplência na venda de veículos, além de dificultar o crédito, começa a provocar situações inusitadas. Consumidores que saíram da concessionária com carro zero há um ano estão voltando às revendas para dar o novo de entrada e financiar um automóvel mais antigo, com prestação menor. Outros tentam repassar o carro e a dívida para terceiros.
Quem se empolgou com o crédito farto dos últimos anos e hoje precisa vender o carro porque não consegue pagar as prestações encontra ainda outra dificuldade. O automóvel está depreciando em média de 15% a 30% no primeiro o ano e muitas vezes o valor da venda não é suficiente para pagar o restante da dívida.
No desespero, alguns tentar repassar o carro e a dívida para outras pessoas, muitas vezes até de graça. Em sites na internet, como Repasso, OLX e até Mercado Livre é possível encontrar anúncios em que a dívida é repassada por valores pequenos, como R$ 500, ou até mesmo sem custo.
O consumidor que mais está se atrapalhando nas contas é aquele que assumiu, além da aquisição do veículo, vários compromissos nos últimos meses, como a compra da casa própria, de móveis e eletrodomésticos.
"Clientes que compraram um carro 2011 voltam à concessionária e financiam um carro 2008, 2009, com prestação mais baixa. Nunca vimos um índice tão grande de troca de um automóvel mais novo por um mais antigo", diz José Castro Pereira, diretor da concessionária Fórmula Renault em Londrina. Segundo ele, entre 15% e 20% das vendas de seminovos da loja são feitas para clientes que dão de entrada um veículo mais novo.
Segundo dados do Banco Central, a inadimplência do setor dobrou no último ano e bateu 5,7% em março taxa mais alta desde o começo da série histórica, em 2000.
Mas nas concessionárias há relatos de que o índice de inadimplência em alguns bancos de montadoras chega a 18%. "Há bancos que estão adiando a busca e apreensão dos carros por falta de pátios para acomodar esses veículos", diz Evandro Lemos Brasileiro, gerente de vendas de novos da Ford Center São José.
Segundo o presidente da Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave) no Paraná, Helmuth Altheim, o maior índice de atrasos está nos financiamentos de carros em 60 vezes. Em média são pagas apenas 20 parcelas, depois disso o orçamento familiar "aperta" e não há mais como honrar com o compromisso. Em um crédito de 60 meses, os pagamentos do primeiro ano amortizam só 10% da dívida.
Com o aumento da inadimplência, os bancos endureceram o crédito para quem está em busca de um automóvel. Financiamentos de 60 meses e sem entrada viraram raridade. A média hoje não passa de 48 meses. Os bancos também alteraram as práticas de análise dos clientes. "Alguns estão investigando o histórico financeiro de até dez anos do comprador", afirma Evandro Brasileiro, da Ford Center.
Na Servopa, o índice de recusa de cadastro, que era de 20% há um ano, hoje está em 40%, segundo o gerente geral, Ruy Fernando Montingelli. "As pessoas faziam uma conta de que poderiam pagar uma parcela de R$ 600 por mês pelo carro, mas muitas esqueceram de colocar outros gastos, como o do seguro e do combustível, que podem encarecer as despesas em até R$ 375 por mês. Em algum momento essas pessoas vão ter dificuldades", acrescenta.
Segundo ele, 30% das vendas da concessionária hoje são realizadas com entrada de um veículo mais novo ou mais caro em troca de um mais barato. "Há casos de pessoas que vão até a concessionária com o carro de R$ 45 mil e trocam por um de R$ 25 mil", diz.
"Estou disposto a dar um passo atrás"
João Pedro Schonarth
O empresário Michel de Oliveira, 24 anos, percebeu neste ano que as contas não estavam fechando, depois de comprar um carro no ano passado. Para pagar os R$ 31 mil pelo novo veículo, ele deu como entrada o carro antigo, que, descontado o valor de quitação, entrou por R$ 11 mil. Os demais R$ 20 mil foram financiados pelo seu banco, que já tinha esse limite pré-aprovado a contratação do financiamento foi feita em um clique pela internet.
O financiamento ficou em 48 vezes de R$ 630. "É um valor alto, mas ainda estava melhor porque financiei pelo banco que já tinha conta há um bom tempo", lembra. A situação começou a apertar quando Oliveira resolveu comprar um apartamento. Para dar entrada no imóvel, teve que tomar um empréstimo para dar uma parcela à vista e financiar outra parte da entrada.
Resultado: hoje o empresário tem, entre prestação do carro, empréstimo e parcela da entrada do imóvel, uma dívida mensal de R$ 1,8 mil. Agora ele tenta uma engenharia financeira para equilibrar as finanças, e a melhor opção que encontrou foi trocar o carro por um mais antigo. Com isso, quitaria o empréstimo e conseguiria manter a prestação do novo veículo e do imóvel.
O problema é que todas as propostas que recebeu de concessionárias não cobrem a quitação do carro mais o pagamento do empréstimo. Para tentar resolver a equação, já anunciou o carro para a venda, mas também não teve sucesso. Entre as propostas oferecidas pelos possíveis compradores, estavam um terreno em Guaratuba e um Monza 1996 e mais R$ 10 mil. "Todas essas contas viraram uma bola de neve e estou disposto a dar um passo atrás com o carro, desde que consiga me livrar do empréstimo. Mas ainda não encontrei uma solução", ressalta.