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As medidas para mitigar os efeitos da pandemia da Covid-19 tiveram forte efeito na mobilidade social do país. A despeito dos temores iniciais de haver um grande incremento da população vulnerável, o país reduziu os indicadores de pobreza para os menores níveis em 40 anos.
Pesquisa da FGV Social que será divulgada nesta sexta-feira (9) revela um fenômeno curioso: o número de pobres diminuiu, mas a quantidade de pessoas com rendimentos relativamente elevados (para os padrões brasileiros) também caiu. Nesse período, quem cresceu foi o "miolo" da distribuição de renda, como são tratadas no estudo as famílias com renda per capita de meio a dois salários mínimos. Esse grupo, identificado com a chamada classe C, já era majoritário e ganhou 21,4 milhões de pessoas, quase meia população da Argentina.
Esse movimento se deu pela combinação de dois fatores principais.
Para a redução da pobreza, o pagamento do auxílio emergencial – benefício que teve cinco parcelas de R$ 600 e mais quatro de R$ 300 até o final do ano – foi a ação que, isolada, trouxe os reflexos mais positivos. Ela não apenas segurou a renda dos trabalhadores informais e população vulnerável, mas chegou a ter efeito de incremento no rendimento.
Em paralelo, há o Programa de Manutenção do Emprego e Benefício Emergencial (BEm), que celebrou 18,6 milhões de contratos e ajudou a manter os postos de trabalho de 9,7 milhões de pessoas. Mas, como havia a previsão de suspensão de contrato de trabalho e redução de salário e jornada, houve um impacto negativo na renda daquelas pessoas que já estão no mercado formal.
Coordenador do estudo, chamado de "Covid, Classes Econômicas e o Caminho do Meio", o diretor da FGV Social, Marcelo Neri, chama atenção para a diminuição do número de pobres.
A quantidade de pessoas com renda domiciliar per capita de até meio salário mínimo diminuiu 23,7% entre agosto de 2019 e o mesmo mês de 2020. Isso significa que 15 milhões de pessoas passaram a ter uma renda superior, fazendo com que o estoque de pobres ficasse em 50 milhões, o menor nível da série histórica. Com isso, o peso desse contingente caiu de 31% para 23,7% da população.
Em contrapartida, os estratos com maiores rendimentos perderam pessoas. Neri optou por agrupar nessa comparação as pessoas com renda domiciliar per capita acima de dois salários mínimos (R$ 2.090) por mês. Segundo o estudo, 4,8 milhões de brasileiros deixaram esse estrato mais alto, e a participação dele na população total caiu 15,7% em 2019 para 13,3% em agosto de 2020.
Neri ainda calculou o crescimento populacional do país neste período, estimado em 1,6 milhão.
Somando os que deixaram a pobreza, os que perderam renda e o crescimento populacional, o estudo concluiu que esse segmento intermediário – também conhecido genericamente como "classe C" – foi “engordado” por mais 21,4 milhões de brasileiros. No ano passado, ela representava 53,3% da população; agora, 63% dos brasileiros estão nesse "miolo".
Como a classe C cresceu na pandemia
A análise de Neri, embora também apresente faixas de renda mais amplas, busca concentrar em três porque elas sintetizam os movimentos observados. A divisão feita foi a seguinte:
- até meio salário mínimo: pode ser vista como uma aproximação do contingente de pobres e representa uma renda de R$ 522,50 mensais, além de ser um dos critérios de inscrição no Cadastro Único (CadÚnico), também usado para selecionar quem receberia o auxílio emergencial;
- entre meio e até dois salários mínimos: compõe um grupo mais estabilizado e com alta representatividade; e
- acima de dois salários mínimos: esse agrupamento foi feito porque é a faixa com menor quantidade de pessoas. Boa parte desse segmento tem renda de até quatro salários mínimos por mês, na divisão per capita; a faixa com renda per capita acima de quatro salários mínimos representa apenas 4,2% da população brasileira, de acordo com os dados de agosto de 2020.
A pesquisa de Neri trabalhou com duas comparações temporais principais: a variação de 2019 para 2020 e durante os meses de pagamento de auxílio emergencial em julho e agosto deste ano.
Para se ter ideia, em 2019, o contingente de pobres (renda mensal de até meio salário mínimo) era de 65,2 milhões e passou para 50,2 milhões neste ano. Apenas entre julho e agosto, 1,95 milhão de pessoas fizeram essa travessia, deixando a pobreza rumo à classe C.
Na parte mais alta da distribuição de renda, o contingente passou de 32,9 milhões em 2019 para 28,1 milhões em agosto de 2020. “Esse quantitativo final é resultado de um rebaixamento acumulado de 4,8 milhões de brasileiros, apesar dos sinais de melhora no último mês, com o crescimento de 1 milhão de pessoas entre julho e agosto”, explica a pesquisa.
Como resultado, a classe C ganhou mais 21,4 milhões de pessoas, vindas sobretudo da parcela mais pobre da população, que foi muito beneficiada pelas ajudas do governo neste período.
Veja a evolução de pessoas com renda domiciliar per capita por classes, calculada pela FGV Social com base nos dados da Pnad do IBGE. Nas linhas está a renda domiciliar per capita e, nas colunas, o número de pessoas nesse estrato, em milhões, a cada ano. Os dados de 2020 são referentes a agosto:
A análise de Neri ainda mostrou que os impactos da mobilidade social entre os mais pobres foram maiores nas regiões Norte e Nordeste. Lá, a quantidade de pessoas com renda de até meio salário mínimo diminuiu 27,5% e 30,4%, respectivamente. Nas demais regiões, o efeito de recuo no contingente de pobres foi menor. O Sul registrou 13,9%, o Sudeste 14,2% e o Centro-Oeste, 21,7%.
“Estas diferenças são explicadas pela maior importância da renda do Bolsa Família expressos em valores per capita mensais nas regiões Nordeste (R$ 16,6) e Norte (R$ 14,7) e os menores nas regiões Sul (R$ 2,64) e Sudeste (R$ 3,94)”, explica.
Outra razão apontada foi a incidência de trabalhadores informais, os "invisíveis" que foram beneficiados com o auxílio emergencial. Da mesma forma que a divisão do Bolsa Família, há mais trabalhadores nessas categorias nas regiões Norte e Nordeste.
Impacto positivo pode ser revertido em 2021
Os resultados positivos, principalmente a respeito da redução da pobreza, são vistos com preocupação por Neri. Para ele, esse é o começo da crônica de uma crise.
“As transferências oficiais emergenciais caem à metade agora e desaparecem em 31 de dezembro, quando teremos meia população da Venezuela de volta à velha pobreza apenas pelo fim do efeito-auxilio, fora novos programas sociais e as cicatrizes trabalhistas de natureza mais permanente abertas pela crise”, argumenta na pesquisa.
A preocupação faz sentido: 38 milhões de brasileiros, que já estão sendo impactados pela redução do valor do benefício, correm o risco de ficar desassistidos no próximo ano sem o auxílio, sem poderem se enquadrar no Bolsa Família e assistindo ao impasse sobre o financiamento do Renda Cidadã.
O governo vem sucessivamente adiando a apresentação da proposta do programa Renda Cidadã – que já foi chamado de Renda Brasil e será a reformulação do Bolsa Família. Há um problema fiscal: a iniciativa é ambiciosa e custará caro, e o governo não tem esse dinheiro para bancar a ação. Fora o problema de financiamento, quase nada a respeito das condicionalidades do programa é discutido abertamente, de modo que é impossível prever quantos desses invisíveis serão de fato agregados ao futuro programa a partir de 2021.
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