A vida foi gravando em seqüências imagens na minha retina, algumas retornam sempre, formam o mosaico da minha existência. São reais e definitivas. Serão lembranças inesquecíveis. Estarão na essência da minha alma, nas rachaduras de meu coração. Continuam voltando aos poucos. Mas creio que um dia, no término da minha existência, virão todas em forma de fotografias. E, uma a uma, serão repassadas em tempo certo e poderei ver o que vivi.
Esta semana, meu arquivo recebeu uma imagem inesquecível: no jornal O Globo, um neném sorridente de braços abertos saúda a todos nós que olhamos a foto. Vou comprá-la e pendurar na parede de meu quarto. Quando estiver triste ou contrariado por coisas banais, aquele anjo me lembrará que a vida vale a pena a dor de ser vivida. Iara, que em língua tupi significa a "Rainha das Águas", tem três meses e sobreviveu contra a mais baixa e sórdida ignomínia que assisti, pasmo, na televisão. Aos pedaços, fui entendendo o que se passava por ter a notícia pela metade. Confesso que estava oscilando dentro de um misto de horror inexplicável e a luz de um milagre que acontecia em nossa frente, ambos fortes pela instantaneidade da televisão. Uma mãe (sic!) se desfizera da filha, colocando-a dentro de um saco plástico na Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte, para que se afogasse e afundasse nas águas sem deixar vestígios de sua morte. O saco foi amarrado num pedaço de madeira que, em vez de afundar, boiou na correnteza próximo da margem. O vigia do Museu de Arte Moderna ouviu o choro, já baixo pela falta de forças, entrou na água e abriu o saco plástico. Atônito, grita: é um bebê e está vivo! Não consigo achar justificativa para a mãe (sic!) que fez isso. Uma crueldade incomensurável, a falta de padrão moral indescritível, um desrespeito humano ainda maior. Mas o pior foi quando, presa pela polícia, disse: "Vocês vão achar quem jogou esta droga de menina na água". Meu Deus, quanta crueldade dentro desta mulher. A notícia correu o mundo, chocou milhões de pessoas. Cito os jornais para não acharem que é uma figura retórica. O La Nación, argentino, com longa matéria, classificou de milagroso o salvamento. O Correio da Manhã, de Portugal, publicou a reportagem e seqüência de imagens do neném. O New York Times, mais forte e influente jornal americano, publicou a matéria. O Washington Post trouxe foto e notícia do caso incrível. O italiano "Corriere della Sera" disse que as imagens do salvamento do bebê e sua sobrevivência passaram em centenas de televisões do mundo. O jornal inglês "Guardian" deu destaque ao caso. A matéria saiu com foto. E, por fim, a rede mundial de televisão CNN noticiou e comentou, durante o horário nobre, os detalhes do acontecimento.
Um horror globalizado emocionou o mundo inteiro, milhares de pessoas se propuseram a adotar a criança imediatamente. E a Simone Cassiana Silva como fica? Pode ser chamada de mãe? Qual a pena que ela merece? Perante Deus será julgada e se fará justiça. Perante as leis que nos regem será condenada. Mas creio que uma pena comum não basta. É preciso transcender o comum, ir além na punição para que fique o exemplo.
Para nós, que a emoção sofrida se transforme em fé, que a "Rainha das Águas" fique para sempre conosco. Símbolo do amor que não teve, seja o símbolo do amor pelos indefesos e humilhados. Iara representa a força da vida, o milagre ocorrido em nossa frente, o anjo que veio do Senhor, Nosso Pai.