Tributo considerado dos mais espinhosos pelos especialistas, o ICMS -imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços possui vasto cabedal de questões pontuais que ensejam, no dia a dia, ardorosos debates.
Uma dessas questões foi recentemente objeto de alentado parecer assinado pelo tributarista Heron Arzua em consulta formulada por um contribuinte. O consulente quis saber sobre o aproveitamento integral do ICMS (via de regra 12%) destacado nas notas fiscais de compras de outras unidades federadas, nos casos de outorga de algum benefício fiscal sem convênio homologado pelos demais Estados e pelo Distrito Federal.
Tendo em vista a importância do assunto e o brilhante conteúdo do aludido parecer, a coluna, com a permissão do autor, reproduz o seu inteiro teor, em duas partes.
O parecer
“A matéria é antiga e já foi objeto de regulação pela Lei Complementar nº 24, de 7 de janeiro de 1975, que dispôs sobre desonerações do ICMS, pertinentes à isenção, redução de base de cálculo, devolução do tributo ao contribuinte, responsável ou terceiros, concessão de créditos presumidos, outros incentivos ou favores fiscais ou financeiro-fiscais, concedidos com base no imposto de circulação de mercadorias, dos quais resulte redução ou eliminação do respectivo ônus, e prorrogações e extensões das isenções vigentes.
Tais benefícios, nos termos do art. 1º da indigitada lei complementar, só podem ser concedidos nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal.
Já o art. 8º, inc. I, do mesmo diploma, inibe o aproveitamento de crédito do imposto estadual feito em desconformidade com as normas da aludida LC 24-75. O texto diz que a inobservância dos dispositivos da LC 24-75 acarreta: “I - a nulidade do ato e a ineficácia do crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria; II – a exigibilidade do imposto não pagou ou devolvido e a ineficácia da lei ou ato que conceda remissão do débito correspondente.”
Destarte, na hipótese em que um Estado tenha concedido, unilateralmente e sem convênio entre Federadas, incentivo fiscal a uma empresa que venha a fornecer produtos tributados a empresa localizada em outro Estado, e esta venha a se creditar do imposto destacado na nota fiscal, a Fazenda da Província destinatária poderá glosar o referido crédito, cobrando daí o valor tributário (principal, mais multa, juros e correção monetária).
Com base na citada Lei 24-75, as Unidades Federadas, praticamente sem exceção, passaram a emitir legislação no sentido de que o crédito permitido para o contribuinte comprador é aquele que foi pago no Estado de origem.
Impende averbar que a Constituição de 1988 cuidou da matéria, rezando que tão-só a isenção ou não incidência, salvo determinação em contrário da legislação, não implica crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes (art. 155, § 2º, inc. II).
Em efeito, a norma restritiva ao crédito de ICMS ficou confinada às hipóteses de isenção e não incidência, não sendo extensiva aos demais benefícios fiscais. No passo, assinala Rogério Pires da Silva: “A Constituição só proíbe o crédito do imposto nos casos de incentivos fiscais concedidos através de técnicas de isenção ou de não incidência. Os incentivos concedidos mediante redução do imposto devido, ou até mesmo mediante escrituração de crédito presumido, a rigor, não estão incluídos na exceção constitucional. O creditamento do imposto não pode ser obstado pelo Estado de destino se o imposto foi integralmente destacado na nota fiscal, inda que no Estado de origem o contribuinte tenha tido sua carga tributária reduzida por incentivo fiscal.” (“Guerra Fiscal e Represálias dos Estados contra os Contribuintes”, Repertório IOB de Jurisprudência nº 6/00, caderno 1, 2ª quinzena de março de 2000, p. 156).
Daí por que tributaristas pensam que o art. 8º, inc. I, da LC 24-75 não foi recepcionada pela Constituição de 1988, porque esta não veda o direito a crédito no caso de concessão de incentivo sem amparo em convênio. (Por todos, José Eduardo Soares de Melo, in “ICMS - Teoria e Prática”, 11ª edição, Dialética, SP, p. 202.)
Os Fiscos dos Estados, vale ressaltar, não concordam com essa inteligência, entendendo que a expressão “isenção” abrange todos os tipos de incentivos fiscais. Seriam “isenções parciais” e, por isso, continuam borrando os créditos de ICMS oriundos de benefícios outorgados sem o respaldo de convênio entre as Unidades Federadas. Tais incentivos entrariam em testilhas com o disposto no art. 155, § 2º, XII, “g”, da Carta Maior. A norma defere à lei complementar regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos ou revogados.
Num primeiro momento, a jurisprudência dos tribunais superiores referendou a interpretação de que o crédito do imposto federativo outorgado sem respaldo em convênio interestadual estaria desconforme a legislação infraconstitucional (Lei C 24-75), com arrimo nos próprios princípios constitucionais. (V. Supremo Tribunal Federal, 2ª Turma, RE 423.658, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 16.12.2005).
No acórdão fora dito que o tributo que deveria ser recolhido pelo vendedor da mercadoria, e não fora, pois convertido em incentivo, traria como conseqüência a inadmissão do crédito no Estado de destino, não se afrontando com isso o princípio constitucional da não-cumulatividade do ICMS. (Art. 155, § 2º, I, da Constituição Federal).
Todavia, ao depois de a doutrina do direito tributário propender que o incentivo concedido por um Estado não teria o condão de afetar o crédito integral para o comprador do Estado do destino, pois, entre inúmeros argumentos, isso equivaleria a desrespeitar a alíquota fixada pelo Senado Federal (de 12% nessas operações), além de que inconstitucionalidades não se poderem compensar, o Superior Tribunal de Justiça (RESPs 1.125, 32.453 e 31.714) passou a dar a inteligência de que o crédito integral poderia ser aproveitado pelo comprador, porque senão o Estado de destino estaria se apropriando de imposto de competência do Estado de origem.
Daí veio a Corte Constitucional Brasileira (Supremo), anotando que a pura e simples glosa dos crédito apropriados é descabida, como se tem da ADI 2.377-MC, DJ de 7.11.2003, assim resumida: “As normas constitucionais, que impõem disciplina nacional ao ICMS, são preceitos contra os quais não se pode opor a autonomia do Estado, na medida em que são explícitas limitações. O propósito de retaliar preceito de outro Estado, inquinado da mesma balda, não valida a retaliação: inconstitucionalidades não se compensam.”
Conclusão do parecer tributarista Heron Arzua na próxima coluna.