A abertura do mercado da Índia e a morte de Madre Teresa de Calcutá, um dos principais ícones da promoção humana e social da Índia, ocorreram na primeira e na segunda metade da década de 90, respectivamente. Hoje, 20 anos depois, o país está prestes a viver um novo ciclo de reformas, econômico e social. Desta vez, porém, um movimento que ocorre mais por necessidade que por opção. Com a moeda local em baixa e o déficit fiscal em alta, o país enfrenta uma crise sem precedentes. Desde que se apresentou ao mundo como o milagre econômico da globalização, isso no final da década de 90, este talvez seja o momento mais delicado do gigante asiático. O cenário estabelece um dilema, onde os problemas impõem desafios e oportunidades, na mesma proporção.

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Na semana passada, quando eu acompanhava a Expedição Safra em seu roteiro pela Índia, o governo daquele país anunciou uma série de medidas para tentar segurar a queda no desempenho do Produto Interno Bruto (PIB), estimular investimentos e tentar manter a autoestima e confiança dos investidores e da população. E como não dá para ser feliz de barriga vazia, a iniciativa de maior impacto e repercussão foi a aprovação da Food Security Bill, a lei de segurança alimentar. Na comparação com um programa brasileiro, uma espécie de Fome Zero indiano. O governo vai subsidiar a cesta básica, colocar comida na mesa a um custo baixo. Aliás, muito baixo, quase que simbólico, de forma a garantir alimentação diária aos mais carentes.

Pelo menos em tese a medida deve atingir 1/3 dos mais de 1,2 bilhão de habitantes. Na prática, porém, vai depender do fôlego financeiro do governo e da estrutura logística de produção, armazenagem e escoamento dessa demanda, que fica nas mãos do setor privado, do produtor, cooperativas, trader ou cerealistas. O Executivo estima um custo anual de US$ 20 bilhões. A dúvida é se Tesouro Nacional dispõe desses recursos. O setor produtivo acredita que não. Já o poder público acredita que a medida deve estimular o consumo, acelerar a economia e devolver a capacidade de compra ao país e de pagamento do governo, dando maior liquidez ao mercado.

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Pela nova lei, cada indiano cadastrado no programa terá direito a comprar cinco quilos de alimentos por mês entre arroz, trigo e os chamados coarse grains como lentilha, grão de bico, etc. O preço que ele vai pagar será de 3 rupias por quilo de arroz, 2 rupias para o trigo e 1 rupia para os outros grãos. No câmbio de ontem o equivalente em reais seria de R$ 0,11, R$ 0,07 e R$ 0,04, respectivamente. A ideia é o governo complementar o valor de mercado com pagamento direto ao atacadista. Para ter noção do valor a ser subsidiado, na semana passado o preço de mercado do quilo do trigo na Índia era de 13 rupias e do arroz, a partir de 22 rupias. Uma rupia é igual a R$ 27.

Não sei se o governo indiano terá recursos e se o país terá a infraestrutura que a demanda exige – acredito que nem eles sabem –, mas se os planos derem minimamente certos, estamos diante de um potencial adicional de bilhões de toneladas de alimentos. Em uma projeção bastante modesta, que considera os 800 milhões de indianos que podem ser contemplados, divididos em famílias de quatro pessoas, sendo um benefício por família, a demanda direta no consumo já será acima de 1 bilhão de toneladas – 5 quilos vezes 200 milhões. A Índia é o terceiro produtor mundial, depois de Estados Unidos e China, com 300 milhões de toneladas. Nesse contexto, é segundo produtor mundial de arroz e de trigo, com mais de 200 milhões de toneladas somente com duas culturas. Embora esteja próxima do limite, a Índia ainda tem área disponível e pode ganhar em tecnologia de produtividade. Mesmo assim vai precisar importar para vencer a demanda a ser criada, se é que ela realmente vai acontecer.

Ao contrário do Brasil, onde o Fome Zero virou Bolsa Família e há transferência direta de renda, na Índia o beneficio está diretamente associado à aquisição do alimento. Não deixa de ser uma maneira de controle e garantia de aplicação do recurso, do subsídio público ao fim específico. No Brasil, pelo menos em tese, mais de 30 milhões de pessoas deixaram a pobreza extrema, o que representa entre 15% e 20% da população. Quero ver fazer isso com 70% da população da Índia. Se isso realmente ocorrer, aí sim, de fato, a Índia poderá ser celebrada como o milagre econômico do mundo moderno. Enquanto isso é esperar para ver, a começar pelo desempenho do PIB deste ano, que deve ficar abaixo dos 5% verificados no ano passado, o menor crescimento em uma década. Ainda assim, mais que o dobro do crescimento esperado no Brasil.

Não restam dúvidas de que a reforma é necessária e muito menos sobre o potencial da Índia. Prover alimento é estimular a produção, promover o consumo e o agronegócio. Porque o problema da fome no mundo não é a falta de alimentos. Mas a falta de dinheiro para comprar o alimento. Assim, no combate à fome ou na promoção econômica bilateral, Brasil e Índia têm muito a ver.

A Índia, então, pode e deve ser mais Calcutá, pela obrigação de combater a fome e pela necessidade de resgatar sua economia. E o Brasil pode, sim, colaborar e se beneficiar, seja do ponto de vista político, econômico ou social.

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