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Míriam Leitão

Agora, a realidade

Aprovado o pacote de resgate dos bancos, resta resolver a devastadora realidade. Não se sabe como usar esses recursos para limpar os bancos de ativos podres, não se sabe como interromper o processo de queda do valor de imóveis que cria novos papéis impagáveis a cada dia, não se sabe como interromper a alta do desemprego que em setembro vitimou 159 mil norte-americanos. Há mais dúvidas que certezas.

O pacote é uma tentativa de interromper a queda livre, de quebrar a cadeia de transmissão da crise de confiança. O melhor cenário é que consiga isso, mas há o risco de que qualquer outro fato inesperado realimente o medo de que o sistema bancário dos países ricos esteja fragilizado demais. E há riscos de fatos inesperados espalhados por aí, pelos bancos europeus, pelas empresas industriais. Quando uma empresa do nível da GE vende um papel que promete pagar 10% ao ano; quando o governador da Califórnia avisa que precisa de US$ 7 bilhões porque não consegue captar recursos, há algo de podre além dos ativos imobiliários de Wall Street.

Já se sabe que, se forem realmente usados, os US$ 700 bilhões podem não ser suficientes. Não se sabe a mecânica de utilização desses recursos para comprar ativos "tóxicos", que contaminam o balanço dos bancos. Os deputados e senadores criaram uma série de restrições, obrigações de prestação de contas e vigilância sobre a utilização do dinheiro. Tinham mesmo que fazer isso, mas nada disso estava nos planos do secretário do Tesouro, Henry Paulson. Saberá ele, com seus cacoetes de ex-Goldman Sachs, fazer seus leilões reversos, ou que instrumento de mercado use, para comprar ativos duvidosos? O pacote criou um monstro híbrido pouco operacional para enfrentar outro monstro, criado pela espantosa incapacidade do mercado de reconhecer a bolha.

Não que ela fosse difícil de ver, mesmo a distância. Eu entrevistei o ex-secretário do Tesouro dos EUA John Snow, há exatos três anos e um mês, na Globonews. Na época, eu disse que o mercado imobiliário vivia uma bolha e perguntei se ele não temia que ela estourasse. Ele negou a existência da bolha e disse que estava monitorando tudo o que estava acontecendo no mercado imobiliário. Pelo visto, não estava: nem ele, nem seu antecessor, nem seu sucessor.

O erro colossal cometido pelo mercado e pelos reguladores encerra um período de desregulamentação para dar início ao que será visto, no futuro, como outro exagero. A re-regulação do mercado tentará corrigir os erros que estão explodindo agora, mas, como em toda ruptura, pode levar a exageros que trarão um engessamento do mercado de crédito.

Ele não pode funcionar como funcionava, sem supervisão, sem fiscalização e com o grau de alavancagem que tinha. Excessivamente regulado, no entanto, pode ser incapaz de prover a liquidez necessária para a retomada do crescimento após a recessão que está instalada na economia.

Os próximos dias mostrarão que a volatilidade vai continuar, a incerteza vai continuar e a recessão já chegou. Como mostrou o texto do jornal New York Times, republicado ontem no jornal O Globo, há uma previsão de que 6 milhões de pessoas deixem de pagar suas hipotecas, neste ano e no próximo. Isso derrubará mais ainda os preços das casas, e pessoas que hoje podem pagar perderão essa capacidade. O norte-americano de classe média terá um patrimônio imobiliário menor do que sua dívida; os bancos terão ativos que não pagam o crédito que concederam.

Nada estará resolvido, até tudo estar resolvido. E na melhor das hipóteses, vão se passar alguns trimestres antes da reorganização da casa; podem se passar anos antes de completar a limpeza da crise financeira. O que terminou ontem foi a votação de uma lei problemática, defeituosa e emergencial, que arranca bilhões dos contribuintes para deter uma sangria no mercado financeiro. Só isso. Não é a salvação.

A força do círculo vicioso tem sido subestimada pelos apressados analistas que vendem ilusões. Agora, eles começam a se fixar em novo alvo: tudo se resolveria se os Estados Unidos reduzissem os juros. E vão especular em torno disso, e da aplicação do pacote para alimentar a volatilidade. É nela que ganham dinheiro.

Os Estados Unidos vivem o ocaso do pior governo da história recente. Têm um déficit fiscal difícil de conter. Outra afirmação de Snow na entrevista de 2005 foi que as contas públicas estavam indo para o equilíbrio. Não irão porque têm enormes pressões de gastos que não se eliminam milagrosamente. O candidato a vice-presidente na chapa democrata, Joe Biden, disse, no debate com a opositora republicana Sarah Palin, que "três semanas de guerra no Iraque consomem o que foram consumidos em sete anos de guerra no Afeganistão". O pacote de resgate financeiro será novo bombardeio nas finanças públicas. A recessão vai exigir mais recursos públicos e vai recolher menos impostos. Tudo caminha para que o novo governo herde um déficit difícil de administrar e uma penosa e longa recessão. Será um difícil começo.

Com Leonardo Zanelli.

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