Para quem mora no Rio foi um breve intervalo. O Pan foi momento de orgulho e sensação de realização. Foi vitória e Hino Nacional cantado com paixão. O sentimento varou o Brasil, mas foi mais forte no Rio. São Paulo foi local da maior tragédia aérea brasileira, que espalhou luto pelo país. Assim passou julho. Agosto começou com tormentos urbanos em São Paulo e com o Rio lembrando os problemas não resolvidos.
O jornal "El País" disse que a segurança do Pan foi miragem, a revista "Economist" acusa a polícia do Rio de ser truculenta. Logo nos primeiros dias pós-Pan, São Paulo vive o tormento de uma greve no metrô, que deixa milhões lutando pelo simples direito de ir-e-vir; o tumulto aéreo também restringe os movimentos e cria tumultos diários para os passageiros, há risco de que oito milhões de paulistanos fiquem sem água neste fim de semana, e o Rio voltou à rotina de conflitos em favelas. Quem não vê, ouve os barulhos de uma cidade conflagrada.
O Pan foi miragem? Não exatamente. Houve esforços da Força Nacional e das polícias, investimentos em equipamentos de segurança que permanecerão, um trabalho coletivo para evitar o que mais se temia: que alguma coisa desse muito errado durante a festa do esporte. Não foi miragem também porque não foi possível esquecer outros problemas: o país continuou vivendo as mesmas aflições, como as estradas, hoje bem mais utilizadas, matando 686 brasileiros só nas férias de julho. Morreram por dois tipos de problemas crônicos: a péssima conservação das estradas e a falta de respeito à lei, uma velha chaga brasileira que está presente em outros descaminhos.
A polícia do Rio é truculenta, como disse a "Economist"? É. É truculenta, tem focos de corrupção ainda não saneados, mistura-se aos bandidos de tal forma que não se sabe quem é quem. Os policiais do Departamento de Polícia de Los Angeles assaltados na semana passada por policiais do Rio podem dizer isso. Mas o que o governo Sérgio Cabral está prometendo junto com seu secretário de Segurança José Mariano Beltrame é enfrentar o crime e o tráfico de drogas em suas cidadelas. Não haverá paz no Rio sem esse enfrentamento. Mas como apostar neste enfrentamento com a falta de confiança que a população tem em sua polícia? Como nos proteger da tragédia de que seja mais uma fonte de massacre dos pobres do Rio, que vivem já sob a truculência do tráfico de drogas e dos crimes. Seria ilusório pensar num tratamento indolor para extrair o crime, que tem raízes tão fundas na geografia da cidade, mas é legítimo exigir que as autoridades evitem os velhos defeitos da abordagem preconceituosa e truculenta que leva o terror ao cotidiano de inocentes moradores da periferia da cidade.
Recentemente, o Megazine publicou uma reportagem exemplar. Um morador do Complexo do Alemão, Maycom Brum, de 19 anos, foi convidado pelo repórter William Helal Filho a escrever um diário naqueles dias da invasão. Ele contou fatos do seu cotidiano: tomou café da manhã reforçado, foi abordado pela polícia na ida para a escola e precisou do testemunho da mãe na janela para atestar ser ele quem é, fez o dever de casa entrando na internet para pesquisar, dormiu com o fone de ouvido para não ter que ouvir os tiros. O que o diário desse adolescente nos revela é que o setor privado conseguiu produzir para ele bens acessíveis: computador, alimentos, telefone, internet. O Estado falhou em oferecer a ele uma cidade com planejamento urbano, um sistema de financiamento habitacional para baixa renda e, principalmente, segurança. Se a polícia, naquela abordagem, estivesse mais nervosa; se um policial suspeitasse de algo na sua mochila escolar, provavelmente seu diário terminaria tragicamente. Esse fio da navalha, essa convivência forçada entre cidadãos de bem e o crime tirânico, com o agravante de uma política truculenta, é o nó do Rio. Foi desse torniquete que estrangula a cidadania carioca que tivemos breve alívio nos dias de festa do Pan.
A festa não foi perfeita. O pior defeito foi ver espaços vazios nos estádios e centros esportivos. Os ingressos nas mãos de cambistas, de empresas patrocinadoras apequenaram a torcida. Os organizadores, as empresas com suas montanhas de ingressos poderiam ter pensado nos jovens estudantes de escolas da periferia. Ver uma disputa olímpica poderia inspirar outras crianças e jovens a seguirem o caminho dos ídolos. É assim que se faz um campeão. Tudo começa com o sonho de imitar os heróis. E que eles sejam os nossos brilhantes esportistas. Outro detalhe revelou um grave defeito nosso e foi denunciado primeiro pelo ator Lázaro Ramos: Diogo Silva, primeiro ouro, lindo em seu choro e sua garra, não consta da lista dos gatos do Pan, como nenhum outro de sua cor. O ideal de beleza branca, ainda dominante, deixa invisível os diogos e a extrema beleza da diversidade.
Tina Correia, amiga jornalista, é testemunha do que vi de mais relevante no dia do encerramento do Pan. Na hora em que o estádio começou a cantar o hino nacional, a lua despontou, abrindo espaço entre as muitas nuvens daquele dia chuvoso e intensamente invernal. A lua continuou a se revelar ao ritmo dos acordes. No "Pátria Amada Brasil", ela estava linda e inteira no céu, para depois se esconder por mais um tempo. Não é nada, não é nada, diria Ancelmo Gois, marido de Tina. Apenas um minuto de beleza e enlevamento; de amar o Brasil e ter esperança. Não foi nada, foi apenas a lua e o hino. Mas foi mágico. Por um instante.
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