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Paul Krugman

Liberdade para morrer

Nos anos de 1980, logo quando a América estava dando sua virada po­­lí­­ti­­ca para a direita, Mil­­ton Fried­­­­­­man emprestou sua voz à mudança com a famosa série de tevê Free to Choose ("Li­­ber­­dade para Escolher", em português). Episódio após episódio, esse economista genial identificava a economia do laissez-faire com poder e escolha pessoais, uma visão otimista que logo se­­ria repetida e amplificada por Ronald Reagan.

Mas isso foi naquela época. Ho­­je, "liberdade para escolher" se tornou "liberdade para morrer".

Estou me referindo, como po­­dem adivinhar, ao que aconteceu durante o debate presidencial do Partido Republicano da última segunda-feira (12). Wolf Blitzer, da CNN, perguntou ao Representante Ron Paul o que ele faria se um homem de 30 anos que houvesse escolhido não pagar por seguro de saúde se encontrasse em necessidade de seis meses de terapia intensiva. Paul respondeu,

"Esse é o quê da liberdade – assumir seus próprios riscos". Blitzer o pressionou novamente, perguntando se "a sociedade deveria deixá-lo morrer".

E a multidão irrompeu com gritos e exclamações de "Yeah!".

Esse incidente relevou algo que eu não acho que a maioria dos comentadores políticos te­­nha plenamente absorvido ainda. A esta altura, a política americana se baseia fundamentalmente em visões morais distintas.

Agora, há duas coisas que vocês deveriam saber sobre o diálogo Blitzer-Paul. A primeira é que depois da intervenção da plateia, Paul basicamente tentou evadir a pergunta, afirmando que médicos de bom coração e indivíduos caridosos sempre garantiriam que as pessoas receberiam o cuidado necessário – ou pelo menos é o que fariam se não fossem corrompidos pelo estado do bem-estar social. Desculpem-me, mas isso é uma fantasia.

Pessoas que não podem pa­­gar por tratamentos médicos es­­senciais com frequência fi­­cam sem, e sempre foi assim – e às vezes morrem como resultado disso.

A segunda é que muitos poucos dos que morrem de falta de tratamento médico são como o indivíduo hipotético de Blitzer que poderia e deveria ter pago por seguro.

Na realidade, a maioria dos americanos sem seguro, ou têm renda muito baixa e não podem pagar pelo serviço, ou são rejeitados pelas seguradoras por causa de condições crônicas.

Então, por acaso as pessoas da direita estariam dispostas a deixar aqueles que não têm se­­guro por motivos de força maior morrerem por falta de tratamento? A resposta, baseada na história recente, é um "Yeah!" ressonante. Pense, sobretudo, nas crianças.

No dia após o debate, o Censo publicou suas mais recentes es­­timativas sobre renda, pobreza e seguro de saúde. O quadro geral era terrível: a economia fraca continua a devastar as vi­­das americanas.

Um ponto relativamente po­­sitivo, no entanto, foi o sistema de saúde para crianças: a porcentagem de crianças sem co­­bertura de saúde foi menor em 2010 do que antes da recessão, majoritariamente graças à ex­­pansão de 2009 do State Chil­­dren’s Health Insurance Pro­­gram (SCHIP, ou Programa de Cobertura de Saúde Infantil Es­­tatal, em tradução livre).

E o motivo pelo qual o SCHIP foi expandido em 2009, mas não antes foi, é claro, que o presidente George W. Bush bloqueou tentativas anteriores de dar co­­bertura a mais crianças – para a comemoração de muitos da direita. Por acaso eu mencionei que uma a cada seis crianças no Texas não tem seguro de saúde, a segunda mais alta taxa da nação?

Logo, a liberdade para morrer se estende, na prática, para as crianças e para os azarados, além dos improvidentes. E o fa­­to de que a direita abraça essa noção sinaliza uma mudança importante da natureza da política americana.

No passado, os conservadores aceitavam a necessidade de uma rede de segurança fornecida pelo governo, sob termos humanitários. Não dê ouvidos a mim, mas a Friedrich Hayek, o herói intelectual conservador, que declarou especificamente em O Caminho da Servidão seu apoio por "um sistema ex­­ten­­si­­vo de seguro social" para proteger os cidadãos contra "os perigos comuns da vida", e apontou para a saúde, em particular.

Dada a desejabilidade de co­­mum acordo de se proteger os cidadãos contra o pior, a questão se tornou uma de custos e benefícios – o sistema de saúde era uma das áreas em que até os conservadores costumavam es­­tar dispostos a aceitar a intervenção do governo em nome da compaixão, dada a clara evidência de que cobrir os não segurados não custaria, de fato, muito dinheiro. Como muitos observadores apontaram, o sistema de saúde de Obama era amplamente baseado em planos republicanos do passado e é virtualmente idêntico à reforma de saúde de Mitt Romney em Mas­­sachusetts.

Agora, no entanto, a compaixão saiu de moda – de fato, a falta de compaixão se tornou uma questão de princípios, pelo menos entre a base do Partido Republicano.

E o que isso significa é que o conservadorismo moderno é, na verdade, um movimento pro­­fundamente radical, um que é hostil ao tipo de sociedade que tivemos por quase três gerações – isto é, uma sociedade que, agindo através do governo, tenta mitigar alguns dos "perigos comuns da vida" através de programas como Previdência So­­cial, seguro-desemprego, Me­­dicare (sistema de saúde público) e Medicaid (programa de au­­xílio médico a famílias de baixa renda).

Será que os eleitores estão prontos para abraçarem uma rejeição tão radical do tipo de América em que todos nós crescemos? Acho que descobriremos ano que vem.

Tradução: Adriano Scandolara.

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