É verdade que a hipocrisia nunca sai de moda, mas 2010 foi especial nesse quesito. O ano passado foi o período das falsas discussões sobre o orçamento dos Estados Unidos – o ano em que incendiários posaram de bombeiros e protestaram contra o déficit enquanto faziam de tudo para aumentar ainda mais o rombo nas contas públicas.

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E não me refiro apenas à classe política. Vocês perceberam como muitos comentaristas políticos e outros sabichões deram uma guinada em seus discursos após o acordo para a redução de impostos estabelecido entre o presidente Barack Obama e o senador republicano Mitch McConnell? Num dia, o déficit era a raiz de todo o mal e os EUA precisavam de um plano de austeridade urgente, não importava o estado da economia. No dia seguinte, um corte tributário de US$ 800 bilhões, financiado pela dívida e com a perspectiva de ser ampliado, tornou-se a melhor solução desde a invenção da roda, um triunfo do bipartidarismo.

Ainda assim, foram os políticos – principalmente os republicanos – que lideraram o front da hipocrisia. No primeiro semestre de 2010, discursos inflamados para denunciar o vermelho das contas públicas norte-americanas eram a norma do Partido Republicano. A preocupação com o déficit justificava a oposição ao aumento de benefícios aos desempregados ou a qualquer outra proposta que tivesse como objetivo auxiliar a população a enfrentar dificuldades econômicas.

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Isso mudou na metade do ano, à medida que se aproximava o "dia B" – a data em que expirariam as isenções fiscais concedidas por George W. Bush aos mais ricos. Minha sugestão para "Manchete do Ano" foi publicada pelo jornal Roll Call em 18 de julho: "McConnell ataca o déficit e pede extensão de isenções".

Como é que os líderes republicanos conciliaram a suposta preocupação sobre o rombo orçamentário com os pedidos por mais reduções de impostos? Será que a velha economia do vodu – a crença, refutada estudo após estudo, de que cortes tributários se autofinanciam – estaria ensaiando um retorno? Não, a estratégia seguiu por um caminho novo e mais perigoso. Apareceram, é claro, as velhas alegações de que a isenção tributária leva ao aumento da arrecadação. Porém 2010 marcou o surgimento de um novo patamar, mais profundo, do pensamento mágico: a crença de que déficits criados por cortes nos impostos simplesmente não têm importância. O senador Jon Kyl, do Arizona – que havia criticado Obama pelo aumento no déficit –, declarou que "nunca é preciso compensar os custos de uma decisão que visa reduzir as alíquotas tributárias pagas pelos norte-americanos".

É fácil ridicularizar uma opinião como essa. Afinal de contas, se a compensação de cortes nos impostos nunca é necessária, por que não eliminamos de uma vez por todas os tributos? Mas a piada recai sobre nós. Apesar de esse tipo de pensamento mágico ainda não ser lei, ele está prestes a se tornar parte do processo legislativo na Câmara dos Deputados.

Como indica o Centro de Prioridades Orçamentárias e Políticas, a nova maioria da Casa planeja mudanças nas regras de responsabilidade fiscal dos EUA que, caso levadas a cabo, simplesmente colocariam em prática o pensamento de Kyl. Aumentos nos gastos teriam de ser compensados, mas perdas de arrecadação não. Ah, e aumentos na arrecadação, mesmo que sejam fruto da eliminação de brechas fiscais, também não seriam levados em conta: qualquer gasto extra precisaria ser compensado por cortes em outras áreas; ou seja, não poderia ser coberto por mais impostos.

Será que a nova maioria parlamentar tem algum plano realista para reduzir gastos? É claro que não. Os republicanos querem cortar US$ 100 bilhões em despesas, montante que, num orçamento federal de US$ 3,6 trilhões, já representaria apenas uns trocados. Eles também dizem que a defesa, o Medicare (plano de saúde público) e a previdência – todas as áreas que concentram os grandes gastos – serão mantidos intactos. Os deputados republicanos desejam cortar em 20% o restante das despesas federais, o que inclui a administração do sistema judicial e a operação dos Centros para a Prevenção e o Controle de Doenças; mas não deram detalhes sobre como os cortes serão aplicados.

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Como essa história irá acabar? Eu vi o futuro e ele está em Long Island, onde cresci. O condado de Nassau – o pedaço de Long Island diretamente ligado à cidade de Nova York – é um dos mais ricos dos EUA e tem uma taxa de desemprego bem abaixo da média. Pela lógica, a região deveria resistir melhor à tempestade econômica. Um ano atrás, no entanto, em uma das maiores vitórias do Tea Party (movimento populista de direita), o condado elegeu um prefeito que denunciava os déficits públicos e que prometia cortar impostos e equilibrar o orçamento. O corte tributário ocorreu, mas o corte nos gastos não veio. Agora, o condado enfrenta uma crise fiscal.

O governo federal tem muito mais flexibilidade do que uma administração local: com isso, não precisa – e nem deve – equilibrar seus orçamentos a cada ano. Aliás, os déficits dos últimos dois anos foram positivos na medida em que deram suporte à economia no rescaldo da crise financeira de 2008. O condado de Nassau, porém, é um exemplo de como governos responsáveis podem desabar nos EUA de hoje, onde um dos grandes partidos acredita em mágica fiscal. Só é preciso um conjunto de eleitores insatisfeitos e que não sabem o que está em jogo – e há muitos norte-americanos assim. República das bananas, aí vamos nós.