A maioria das pessoas conhece Swift como o autor das Viagens de Gulliver. Mas acontecimentos recentes têm me feito pensar em seu ensaio de 1729, Modesta Proposta, no qual o escritor, observando a extrema pobreza dos irlandeses, oferece uma solução: vender as crianças como alimento. "Concedo que tal repasto custará um pouco caro", admite ele, mas isso seria "bem apropriado para os senhorios, que, uma vez que já devoraram a maioria dos pais, parece lhes ser de direito ficar também com as crianças".
OK, nos dias de hoje não se trata de senhorios, mas de banqueiros e eles estão empobrecendo a população, não devorando-a. Mas só um satirista e com uma verve muito aguda poderia dar conta do que está acontecendo atualmente na Irlanda.
A história começa com um verdadeiro milagre econômico. Com o tempo, porém, ele deu lugar a um frenesi especulativo impulsionado por bancos e incorporadores imobiliários fora de controle, tudo isso avalizado por uma relação promíscua com políticos importantes. A orgia foi financiada com empréstimos enormes por parte dos bancos irlandeses, tomados principalmente de bancos de outros países europeus.
Com o estouro da bolha, esses bancos enfrentaram grandes perdas. Poderia se esperar que as instituições que emprestaram o dinheiro compartilhassem dos prejuízos. Afinal, ambas as partes eram adultas, consentiram nas operações e, se não perceberam os riscos que estavam assumindo, a culpa não foi de mais ninguém, senão delas próprias. Mas não: o governo irlandês entrou em cena como garantidor das dívidas dos bancos, transformando perdas privadas em compromissos públicos.
Antes do malogro dos bancos, a Irlanda tinha uma dívida pública pequena. No entanto, com os contribuintes subitamente em dificuldades pelas perdas bancárias gigantescas, e as receitas em queda, a credibilidade do país foi posta em dúvida. Foi então que a Irlanda tentou tranquilizar os mercados com um duro programa de cortes de gastos.
Tome distância dos fatos por um momento e pense sobre eles. Aquelas dívidas foram contraídas não para financiar programas públicos, mas agentes privados que especulavam buscando nada além de seu próprio lucro. O cidadão comum irlandês é quem está agora arcando com os prejuízos.
Ou, para ser mais exato, faz muito mais do que arcar com os prejuízos porque os cortes de gastos causaram uma severa recessão, de modo que, além de assumir as dívidas dos bancos, os irlandeses estão sofrendo com salários em queda livre e alto desemprego.
Não há alternativa, porém, é o que diz certo pessoal importante: tudo isso é necessário para restabelecer a confiança.
Mas o que é estranho de se constatar é que o nível de confiança não melhora. Pelo contrário: os investidores estão percebendo que todas aquelas medidas de austeridade só têm servido para deprimir a economia e fogem de financiar a dívida irlandesa por conta da debilidade econômica do país.
E agora? No fim de semana passado, Irlanda e países vizinhos acertaram o que tem sido amplamente descrito como um "resgate". O que realmente aconteceu, porém, foi que o governo irlandês prometeu impor ainda mais sacrifício à população em troca de uma linha de crédito que, presumivelmente, dará mais tempo à Irlanda para... recuperar a confiança dos mercados. Os quais, compreensivelmente, não ficaram muito impressionados, e os juros dos títulos da dívida irlandesa subiram ainda mais.
Será que realmente tem que ser assim?
No início de 2009, circulava uma piada: "Qual é a diferença entre a Islândia e a Irlanda?" Resposta: "Algumas letras e uns seis meses". Era para ser humor negro. Não importava o quanto a situação da Irlanda fosse ruim, não se comparava ao desastre total ocorrido na Islândia.
A esta altura, no entanto, a Islândia parece, na verdade, estar se saindo melhor do que sua colega de nome parecido. A crise econômica, lá, não é mais profunda do que a da Irlanda, a perda de postos de trabalho foi menos severa e o país parece no rumo de uma recuperação. De fato, os investidores, aparentemente, estão considerando os papéis da dívida islandesa mais seguros do que os da irlandesa. Como isso é possível?
Parte da resposta é que a Islândia fez os credores estrangeiros dos bancos locais pagarem o preço de seu mau julgamento quanto aos riscos, em vez de imputar a seus próprios contribuintes responsabilidade sobre dívidas privadas. Conforme anotou o Fundo Monetário Internacional e com aprovação! "as falências do setor privado [na Islândia] levaram a uma acentuada redução da dívida externa". Ao mesmo tempo, o país ajudava a evitar parcialmente uma situação de pânico financeiro, pela imposição de controles temporários à saída de capitais ou seja, limitando a possibilidade de remessa de fundos para fora do país.
A Islândia também se beneficiou do fato de que, ao contrário da Irlanda, mantém sua própria moeda; a desvalorização da coroa, o que tornou as exportações islandesas mais competitivas, tem sido um fator importante para atenuar a queda.
Nenhuma dessas opções heterodoxas estão disponíveis para a Irlanda, dizem os sabichões. Nesse caso, afirmam eles, deve-se continuar a impor sofrimento aos cidadãos porque fazer qualquer outra coisa fatalmente comprometeria a confiança no país.
Mas a Irlanda está agora no seu terceiro ano de medidas austeras e a confiança continua a se esvair. Então é de se perguntar quanto tempo vai levar para aquele certo pessoal importante perceber que punir o povo pelos pecados dos banqueiros é pior que um crime; é um erro.