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Com dinheiro e problemas de sobra, setor de energia pode ser novo “pontocom” tecnológico

Placas de energia solar | Cristina Quicler/AFP/Arquivo
Placas de energia solar (Foto: Cristina Quicler/AFP/Arquivo)

Em apenas um ano, o equivalente ao PIB do Chile foi investido em energias renováveis, no mundo todo. São bilhões de dólares em corrida contra o tempo para conter as emissões de carbono, o que cria um ambiente muito favorável para inovação. A ponto do setor de energia ser comparado ao fenômeno das empresas “pontocom” no início dos anos 2000, quando a empolgação com o surgimento das empresas de internet foi tão forte a ponto de criar uma bolha financeira.

Há pouco mais de um ano, o bilionário Elon Musk prometeu construir, em menos de 100 dias, a maior bateria de íon-lítio do mundo. A proposta foi taxada por críticos de “a Kim Kardashian das baterias” — famosa pelo simples fato de ser famosa. Mas o plano deu certo. A bateria é tão rápida que gera mais energia do que as autoridades conseguem mensurar, segundo a Tesla.

O projeto dá uma dimensão de como as coisas são intrincadas no setor de energia. O foco da Tesla são automóveis. Mas a companhia sabe que seus carros elétricos não vão muito longe se a energia que sai da tomada for produzida por usinas à carvão.

“Nos anos 2000 todo mundo concordava que o futuro seria através da internet, mas ninguém sabia direito como seria este futuro. O que a gente vê hoje na área de energia é parecido”, explica Hudson Mendonça, professor da FGV e ex-Superintendente da Finep.

Isso faz com que o investimento em novas tecnologias corra em várias dimensões, ao mesmo tempo. O que cria uma avenida para o surgimento de startups e de projetos de inovação dentro de grandes empresas.

Estima-se que haja algo em torno de cinco mil startups de energia no mundo todo. Em geral são empresas que exigem uma base tecnológica robusta já em suas fases iniciais, e com equipes mais sênior do que as de startups de outros setores.

Desenvolvedora de softwares para microrredes de energia, a Fohat foi criada há dois anos, por uma equipe com mais de uma década de experiência na indústria. O CEO, Igor Ferreira, começou a gestar o projeto quando trabalhava na área de eletromobilidade da Volvo. A startup hoje desenvolve um projeto em conjunto com a fabricante, mediante parceria da Volvo com a aceleradora do Sistema Fiep.

Microrredes são grandes baterias, em geral utilizadas em comunidades afastadas, onde é muito difícil levar a infraestrutura da rede energético. Neste caso pode ser mais fácil ter uma pequena fazenda de vento, por exemplo, e armazenar a energia nestas grandes baterias.

Os programas desenvolvidos pela Fohat permitem às redes uma série de outros usos, como impedir oscilações bruscas na rede de energia e servir como um backup para grandes indústrias.

Programas de inovação aberta

A Fohat é uma das três startups do setor que receberam investimento da Safira Energia. A empresa paulista, que atua principalmente na comercialização, começou a se abrir para startups no ano passado (2018).

Há dez anos no mercado, a empresa sabia que precisava estar próxima a startups para estar em linha com o futuro do setor elétrico, só não sabia bem como.

Em menos de um ano o processo amadureceu tanto que a empresa resolveu criar um centro de inovação no Potato Valley, na região central de São Paulo. “O Safira Labs não se dedica somente ao ecossistema de energia. A ideia é ter esta troca no ambiente corporativo em que a Safira vai ganhar DNA e vai criar valor para elas”, avalia o diretor-executivo Mikio Kawai Júnior.

A CPFL Energia, que atua há 106 anos no setor elétrico lançou, este mês, a segunda edição do seu programa de inovação aberta, em parceria com a Endeavor. A empresa tem tradição de trabalhar em parceria com universidades (como USP e Unicamp) e institutos de pesquisa (como Lactec e CPQD). E agora busca startups para melhorar sua eficiência e estruturar novos mercados, explica o diretor de Inovação e Estratégia da CPFL, Rafael Lazzaretti.

Na primeira rodada do CPFL Inova, a empresa investiu mais de R$ 6 milhões em projetos conjuntos com 12 startups diferentes.

“O nosso core business, que é distribuição e geração, vai exigir cada vez mais uma matriz limpa de carbono, então a gente investe em fontes renováveis. Na distribuição temos muitas oportunidades em tecnologia como as redes inteligentes, algo que está muito ligado às cidades inteligentes”, avalia Lazzaretti.

Quanto estou consumindo

Outro eixo de aposta da CPFL é o “empoderamento do consumidor”. Uma das startups parceiras suas, a Time Energy, desenvolveu uma tecnologia que permite ao consumidor monitorar, em tempo real, qual equipamento consome sua energia, e em qual quantidade.

A ideia é oferecer o serviço para todo tipo de cliente, inclusive doméstico. Mas o foco inicial é em grandes comércios e indústrias, explica Leandro Pereira, da Time Energy.

“O sensor consegue fazer a medição de cada circuito da indústria sem um fio, sem bateria, nada, só com a corrente que passa ali”, explica. A startup estima que seja 10% dos gastos sem muito esforço, com base em uma análise preliminar de gastos. O que tem um impacto alto para um grande cliente.

Além de softwares para este e outros serviços, a Time Energy também desenvolve hardwares (os “aparelinhos”) necessários para as medições, em sua sede na Ciatec, polo de alta tecnologia em Campinas. A startup também é próxima da Universidade de Campinas (Unicamp), onde está instalando medidores inteligentes, que prescindem de operador para fazer a leitura do consumo.

Três gigawatts na conta

Outra startup que participou do programa da CPFL foi a Delfos, do Ceará. A empresa desenvolve um software de governança operacional que monitora ativos, como uma turbina eólica, por exemplo.

O programa da Delfos monitora a turbina, ao mesmo tempo em que cria uma “cópia virtual” dela. Com inteligência artificial, o software consegue comparar o funcionamento real da máquina àquilo que seria esperado dela em condições ideais. O que permite adiantar uma manutenção antes da peça quebrar, por exemplo.

Há dois anos operando para valer, a Delfos fechou 2018 gerenciando, por mês, 3,1 gigawatts de ativos. Para se ter ideia, a gigante Itaipu (que produz sozinha 15% da energia brasileira) tem capacidade instalada de 14 gigawatts.

A startup entra em um mercado que há poucos anos era inexistente. Em cinco anos, entre 2013 e 2017, a geração de energia elétrica por fonte eólica quintuplicou de tamanho, e já representa 7% de toda a energia produzida no país.

No mundo inteiro, o investimento no conjunto de fontes renováveis somou US$ 2,9 trilhões nos últimos anos, entre 2004 e 2017. A eletricidade gerada é suficiente para conter a emissão de 1,8 gigatoneladas de dióxido de carbono na atmosfera. Equivalente ao produzido por todos os modais de transporte dos Estados Unidos.

Em dezembro a Delfos recebeu seu primeiro investimento, de R$ 1,5 milhões, liderado pela EDP. A startup já atua nos segmentos eólico, solar e inicia projetos para micro centrais hidrelétricas. “Nosso objetivo com o aporte é, até o fim do ano, estar com um produto pronto para ser internacionalizado”, explica o CEO Guilherme Stubart.

Futuro em aberto

O futuro da inovação no setor de energia está em aberto. Além das fontes eólica, solar e de biomassa, há uma infinidade de tecnologias em jogo, como a geração distribuída (que incorpora a energia produzida no painel solar da sua casa, pro exemplo) e o papel das baterias neste processo todo.

O futuro do carro elétrico, tendência até pouco tempo incontestável no setor automobilístico, traduz bem esta indefinição. O mundo pode seguir um modelo de carros particulares, em que o carregamento é feito em casa; com polos similares a postos de combustível onde é feita a troca desta bateria; ou de carros autônomos, pertencentes a frotas de grandes empresas, estilo Uber.

Cada um destes caminhos impulsiona tecnologias de produção e distribuição de energia muito distintos entre si, na avaliação do pesquisador Hudson Mendonça, da Coppe/UFRJ e FGV.

Novo jeito de criar tecnologia

Esta indefinição molda a própria forma como a tecnologia é desenvolvida. A Isa Cteep, considerada uma das empresas mais abertas para startup do país, está revendo toda sua lógica de pesquisa e desenvolvimento, com base em seu relacionamento com startups e institutos de pesquisa, como a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli/USP).

Em seu projeto de drones, a Isa Cteep não definiu um objetivo específico, e sim quatro visões estratégicas: que a aeronave voe de forma autônoma, com o mínimo de interação humana possível; que reconheça sozinha o que está procurando; que o equipamento esteja integrado ao workflow da empresa (a ponto de solicitar automaticamente uma equipe de reparo ao identificar um problema); e que sua autonomia seja indeterminada.

Neste último segmento, há a possibilidade de que o drone se auto-carregue sugando energia do campo eletromagnético das bobinas, em pleno voo. A empresa atua em todas as áreas ao mesmo tempo, com ciclos de curto duração. Sempre em parceria.

“Este projeto foi estruturado em conjunto com o ecossistema de inovação. Temos uma grande parceria com o LSI da Poli, um dos lugares mais avançados para pesquisa aplicada no Brasil. No campo, para testes, temos o know how da startup Drone Power”, explica o gerente de Inovação da Isa Cteep, Ricardo Khan.

A empresa deve lançar, em breve, um projeto mais amplo de parceria com o ecossistema de inovação, para reunir corporações, startups e instituições de pesquisa. A ideia é mobilizar um setor que “tem talento, tem dinheiro e muita disposição para investir e apostar em coisas novas”, na avaliação de Khan:

“O modelo tradicional do setor elétrico não tem perspectiva de crescer, não tem mais como você construir uma grande hidrelétrica (seja por falta de potencial ou questões ambientais). Então qualquer tipo de crescimento vai vir de inovação”.

Os números dão uma dimensão do dinheiro disponível para inovação em energia no país. Por determinação da Aneel, todas as concessionárias e permissionárias do serviço público de energia elétrica são obrigadas a aplicar um percentual de sua receita em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). Programa que não se limita, mas cada vez mais se aproxima do investimento em inovação aberta, pensada para esta nova era da indústria energética. Só em 2017 (dado mais atualizado), o conjunto das empresas investiu R$ 563 milhões de reais em P&D, segundo dados da Aneel.

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