Estados alegam que crescimento de arrecadação não é estrutural| Foto: Lia de Paula/Agência Senado
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As estratégias utilizadas pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) para reduzir o preço final dos combustíveis atingiram em cheio as finanças das administrações estaduais, altamente dependentes da arrecadação com o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Apenas a Lei Complementar 194/2022, que limitou as alíquotas do tributo sobre combustíveis, energia, transportes e comunicações, deve reduzir as receitas das unidades federativas em cerca de R$ 54 bilhões até o fim do ano, de acordo com as secretarias de Fazenda estaduais.

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Diante dos protestos de governadores, o governo federal argumenta que a arrecadação, a poupança e os investimentos dos estados cresceram nos últimos anos em razão de ganhos proporcionados pela inflação de combustíveis e energia na retomada econômica, além de transferências federais para o combate à pandemia de Covid-19.

Segundo dados do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), em 2021 a arrecadação líquida do ICMS com combustíveis e lubrificantes foi de R$ 112,5 bilhões, uma alta de 40% em relação a 2020, quando foram contabilizados R$ 80,4 bilhões. Os números foram utilizados pelo senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), em seu relatório ao PLP 18, que deu origem à Lei Complementar 194.

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Um relatório divulgado no fim de junho pela Secretaria do Tesouro Nacional, do Ministério da Economia, mostra que todas as 27 unidades da federação tiveram crescimento em suas receitas no segundo bimestre, na comparação com o mesmo período de 2021. As maiores elevações ocorreram no Rio de Janeiro (40%) e no Pará (34%).

De acordo com o documento, houve aumento também nas despesas, mas em 20 das 27 unidades federativas em escala inferior à das receitas. No Rio de Janeiro, por exemplo, os gastos subiram 19%, e no Pará, 20%.

Crescimento das receitas e despesas correntes

  • Receitas correntes realizadas e despesas liquidadas até o 2º bimestre de 2022 em relação ao mesmo período do exercício anterior (%)
UF Receita Despesa
AC 20% 12%
AL 21% 23%
AM 17% 22%
BA 21% 10%
CE 18% 19%
DF 12% 6%
ES 31% 12%
GO 17% 2%
MA 19% 27%
MG 9% 16%
MS 18% 0%
MT 26% 12%
PA 34% 20%
PB 25% 18%
PE 3% 5%
PI 19% 15%
PR 24% 9%
RJ 40% 19%
RN 16% 9%
RO 32% 38%
RR 10% 35%
RS 4% 0%
SC 33% 16%
SE 14% 2%
SP 22% 19%
TO 27% 16%

Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional

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Outro indicador que aponta melhora na saúde fiscal dos estados é a poupança corrente, ou seja, a diferença entre as receitas correntes e as despesas correntes empenhadas. Segundo o Tesouro Nacional, o dado, se positivo, aponta a autonomia para realização de investimentos com recursos próprios.

O melhor indicador foi observado no Amapá, onde a diferença entre receitas e gastos chegou a 60% da receita corrente líquida (RCL). No segundo bimestre de 2019, antes da pandemia, o nível de poupança corrente do estado era de 47% da RCL. Na época, estados como Goiás e Rio Grande do Sul apresentavam taxas negativas, de 7% e 6%, respectivamente. Segundo o último relatório, agora têm 22% e 21%.

Poupança corrente em relação à receita corrente líquida (RCL)

UF Poupança corrente/RCL
AC 37%
AL 28%
AM 25%
AP 60%
BA 33%
CE 34%
DF 25%
ES 39%
GO 22%
MA 26%
MG 20%
MS 29%
MT 48%
PA 33%
PB 33%
PE 29%
PE 29%
PI 32%
PR 42%
RJ 31%
RN 28%
RO 37%
RR 34%
RS 21%
SC 33%
SE 22%
SP 35%
TO 31%

Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional

Com isso, estados estão conseguindo quitar restos a pagar, ou seja, despesas orçadas durante um ano fiscal e que não foram honrados. O Distrito Federal chegou a quitar 74% das despesas inscritas ao fim de 2021. Paraíba se desfez de 72% de seus restos a pagar, e o Pará, 70%. Na outra ponta, Rio Grande do Sul, Amapá e Minas Gerais conseguiram quitar apenas 9%, 10% e 11%, respectivamente.

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Com isso, houve aumento nos investimentos dos estados. Até o segundo bimestre de 2022, a Bahia aplicou 10% de sua receita total com esse tipo de despesa. Espírito Santo, Maranhão e Alagoas investiram 9%, enquanto Mato Grosso do Sul, Piauí e Santa Catarina, 8%. Para se ter uma ideia, em 2019, no mesmo período, o maior índice, da Bahia, era de 5%.

Composição das despesas em relação à receita total

UF% custeio% pessoal % investimento% dívida
AC 17% 47% 2% 5%
AL 24% 46% 9% 6%
AM 25% 40% 3% 3%
AP 12% 37% 2% 0%
BA 22% 46% 10% 3%
CE 22% 44% 4% 5%
DF 26% 51% 1% 2%
ES 21% 39% 9% 3%
GO 27% 52% 2% 1%
MA 28% 44% 9% 7%
MG 19% 50% 5% 15%
MS 17% 55% 8% 4%
MT 10% 46% 2% 6%
PA 24% 45% 7% 2%
PB 12% 54% 5% 2%
PE 24% 48% 4% 2%
PI 25% 45% 8% 6%
PR 12% 48% 3% 2%
RJ 22% 50% 2% 1%
RN 10% 65% 1% 1%
RO 19% 46% 0% 1%
RR 19% 47% 1% 3%
RS 15% 65% 2% 1%
SC 17% 50% 8% 4%
SE 27% 51% 4% 3%
SP 21% 45% 3% 8%
TO 18% 53% 2% 3%

Fonte: Secretaria do Tesouro Nacional

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]

Estados alegam que crescimento não é estrutural

Os estados, por sua vez, afirmam que o aumento recorde na arrecadação não foi estrutural. “A receita de ICMS cresceu muito acima do habitual, pulando de 7% para 7,6% do PIB, sem haver um real aumento de carga tributária para os contribuintes, nem qualquer outra mudança estrutural na economia que justificasse a crença de que esse resultado se repetirá pelos próximos anos”, diz o Comitê Nacional dos Secretários de Fazenda dos Estados e do Distrito Federal (Comsefaz), em nota.

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A partir de análise do economista Sérgio Gobetti, a entidade alega que a receita estadual advinda do ICMS poderá cair até 1,5% do PIB nos próximos anos, em decorrência da reversão dos ganhos extraordinários de arrecadação obtidos em 2021 e da redução permanente das alíquotas de combustíveis, energia e telecomunicações.

Segundo o economista, a alta recente na arrecadação tratou-se de uma conjunção de fatores atípicos, que tende a se reverter. “O que ocorreu foi a combinação de dois eventos extraordinários: o aumento do preço do petróleo bem acima da média histórica e o crescimento do PIB industrial, que serve de base para o ICMS, bem acima do PIB geral da economia brasileira”, explica Gobetti.

Embora tenham reduzido suas alíquotas de ICMS, 11 estados ainda tentam reverter no Supremo Tribunal Federal (STF) os efeitos da Lei Complementar 192/2022, que estabeleceu alíquota única e uniforme para todo o país do ICMS sobre combustíveis. Na segunda-feira (18), o ministro Gilmar Mendes, relator do caso na Corte, determinou a criação de uma comissão especial de conciliação com o objetivo de buscar um consenso dos interesses dos estados e da União.

Para o economista Raul Velloso, especialista em análise macroeconômica e finanças públicas, não há exatamente um lado certo nessa disputa. “Há interesses se cruzando. Do ponto de vista do governo federal, o ideal é que não haja inflação, que a Petrobras continue lucrando e que as alíquotas do ICMS diminuam para não ter esse impacto sobre as pessoas que consomem o combustível nas bombas dos postos”, diz.

“Do ponto de vista do gestor estadual, ele tende a ser contra isso porque ele vai sempre procurar aumentar a arrecadação não só para pagar suas dívidas, mas também para fazer frente aos gastos que precisa fazer e que também têm subido muito”, explica. “O estado é o primo pobre da federação”.

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Segundo Velloso, que foi secretário de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento, diversas unidades federativas têm enfrentado graves crises em razão do aumento desproporcional de despesas com as previdências estaduais, que as obrigam a reduzir investimentos.

“Estados vão acabar perdendo as despesas financiadas por receitas cativas nas áreas de educação e saúde, que são críticas também. Mas previdência é uma conta que precisa ser paga. Subiu, vai ter de enfrentar, e aí o que sobra é cortar investimentos. É isso que está acontecendo no Brasil: estamos seguidamente cortando investimentos há 12 anos para poder pagar a conta da previdência”, afirma. “O que os governadores estão vendo agora é uma possibilidade de reagir melhor a isso.”

Em live promovida pelo jornal Valor Econômico, o economista Daniel Couri, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), disse que as limitações à arrecadação de ICMS dos estados devem representar, mais para frente, uma espécie de “reforma tributária forçada” nos estados.

“Nenhum estado que tem perda de arrecadação relevante como essa vai ficar parado”, disse. Para ele, o impacto das medidas deve ser heterogêneo, “mas todos vão sentir de alguma forma”.

“Temos vários regimes especiais no âmbito dos estados. Essa perda de arrecadação do PLP 18 vai forçar todos os governos estaduais a repensarem outros benefícios que serão concedidos”, afirmou Couri. “Isso vai forçar a gente a ter uma composição de arrecadação estadual diferente da que a gente tem hoje.”

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