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Para ajudar a viabilizar o Renda Cidadã, programa social que deve substituir o Bolsa Família e o auxílio emergencial a partir de 2021, o governo quer limitar os pagamentos anuais de precatórios – valores devidos a pessoas físicas e jurídicas após sentença definitiva na Justiça – a 2% da receita corrente líquida.
Essa é uma fórmula que já é usada temporariamente por alguns estados e municípios, mas que desperta dúvidas quanto à sua pertinência e legalidade, já que o governo apenas estaria jogado para a frente uma dívida já reconhecida e executada, em vez de cancelar outra despesa, como manda a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Mas, afinal, o que são precatórios e quem pagará essa conta?
Os precatórios são títulos de pagamento expedidos pelo Judiciário para que municípios, estados e União paguem o que devem a pessoas físicas e jurídicas, após condenação judicial transitada em julgada – em definitivo, sem possibilidade de novos recursos.
Por exemplo: uma pessoa entra na Justiça para cobrar a União porque não recebeu devidamente a aposentadoria. Após o trâmite judiciário, se comprovada a irregularidade, a Justiça emite um precatório e manda a União pagar o devido, em valores corrigidos.
O pagamento dos precatórios está previsto no artigo 100 da Constituição Federal. Uma vez transitado em julgado o processo, o presidente do Tribunal em que ocorreu a ação tem que formular a requisição do pagamento. Feita a requisição, o valor é alocado no Orçamento para pagamento. No caso da União, requerimentos feitos até 1º de julho de cada ano entram no Orçamento do ano seguinte. Requerimentos feitos após essa data ficam para o ano subsequente.
São cinco os principais tipos de precatórios devidos pela União, segundo o Tesouro Nacional informou à Gazeta do Povo:
- Regime Geral de Previdência Social (RGPS) Urbano – aposentadorias, pensões, auxílios doença e outros benefícios previdenciários urbanos
- RGPS rural – aposentadoria rural
- Pessoal – salários, benefícios, aposentadoria do funcionalismo público
- Benefício de Prestação Continuada (BPC)/Lei Orgânica de Assistência Social – benefícios assistenciais pagos a pessoas carentes e deficientes
- Outros - desapropriações, tributos, indenizações por dano moral, etc.
Segundo a Constituição, os precatórios de natureza alimentar – como decisões sobre salários, pensões, aposentadorias, indenizações por morte ou invalidez, benefícios previdenciários, créditos trabalhistas, entre outros – precisam ser pagos primeiro. Depois, entram na fila os precatórios de natureza comum, como aqueles de decisões sobre desapropriações, tributos, indenizações por dano moral, etc. Ainda existe a possibilidade de adiantamento do precatório alimentar quando o credor tiver 60 anos ou mais ou doença grave.
O pagamento dos precatórios federais usualmente é realizado pelos próprios tribunais nos quais houve o julgamento dos processos. A União libera o dinheiro para a Justiça e os tribunais fazem o pagamento. O calendário é divulgado anualmente pelo Conselho da Justiça Federal (CJF). Uma exceção ocorre quando o INSS é condenado na Justiça Estadual. Nesse caso, o pagamento é feito diretamente pela autarquia, em calendário por ela estabelecido.
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O que o governo quer fazer é impor uma trava ao pagamento anual de precatórios. Ele pretende que, no máximo, 2% da receita corrente líquida prevista para determinado ano possa ser destinada ao pagamento dos precatórios. Acima desse valor, os títulos ficaram numa espécie de fila, aguardando pagamento nos anos seguintes. Ou seja, a União continua devendo, mas joga a dívida para frente, o que está sendo chamado por especialistas de “contabilidade criativa”, tese negada pelo Tesouro.
Na proposta orçamentária de 2021, encaminhada pelo governo em agosto – antes, portanto, dessa ideia da trava –, a União já tinha separado R$ 55,52 bilhões para pagamentos de precatórios. Esse era o montante necessário para dar conta dos precatórios emitidos pelos tribunais e informados à União até a data-limite estabelecida pela Constituição. Os R$ 55,52 bilhões estão assim divididos:
- R$ 22,2 bilhões para precatórios relacionadas à Previdência rural e urbana – 40% do total
- R$ 10,4 bilhões a pessoal – 19%
- R$ 1,4 bilhão com BPC/LOAS – 2,5%
- R$ 21,54 bilhões a outros casos – 38,5%
Se a trava que será proposta pelo governo na PEC Emergencial, por meio do senador Márcio Bittar (MDB-AC), for aprovada, a União poderá pagar apenas R$ 16 bilhões, que são os 2% da receita corrente líquida projetada para 2021. Com isso, sobrariam no Orçamento do ano que vem R$ 39,52 bilhões, dinheiro que seria destinado para o Renda Cidadã.
Estados e municípios se utilizam da trava
Atualmente, não existe esse limite de pagamento para a União e para os demais entes públicos que não tinham dívida de precatórios até 2009. Por isso, as requisições de pagamento de precatórios recebidas até 1º de julho são incluídas na proposta orçamentária do ano seguinte e as recebidas depois, no ano subsequente.
Uma vez inscrito no Orçamento aprovado pelo Congresso, o pagamento precisa ser feito. O Orçamento de cada ano possui um “listão” com os precatórios que serão pagos. O calendário é divulgado pelos tribunais.
Porém, a trava que a União quer colocar no seu Orçamento não é novidade. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a partir de 2009, estados, Distrito Federal e municípios que apresentavam dívidas de precatório, ou seja, precatórios que não tinham sido pagos, foram para o chamado “regime especial”, com validade até 2024, de acordo com a emenda constitucional 99/2017.
Esse regime permite que estados e municípios optantes fixem percentual mínimo entre 1% e 2% de sua receita corrente líquida para o pagamento de precatórios, fazendo transferência mensal aos tribunais. Os tribunais organizam a lista de quem vai receber primeiro os precatórios de acordo com as prioridades (precatórios alimentares primeiro) e preferências (idosos e doentes graves), conforme manda a Constituição.
Quanto é pago de precatório pela União e qual o estoque
O Tesouro Nacional tem somente dados agregados de pagamento e restos a pagar de precatórios e Requisição de Pequeno Valor (RPV). As RPVs seguem a mesma lógica dos precatórios, com a diferença da data de pagamento. Como envolvem casos de menor valor, elas precisam ser pagas em até 60 dias a partir da intimação do devedor. O limite de RPV da União é de 60 salários mínimos.
Não está claro se o governo vai limitar somente os precatórios ou também os RPVs. O texto ainda não foi protocolado no Congresso.
Pelos dados do Tesouro Nacional, que envolvem precatórios e RPVS, a União já gastou e tem a pagar:
Ainda segundo o Tesouro, o estoque a pagar de precatórios e RPVS em 31 de dezembro de 2019 estava em R$ 70,4 bilhões. O número de pessoas físicas e jurídicas não foi informado. Os valores relacionados a despesas de pessoal e benefícios previdenciários representaram, juntos, aproximadamente R$ 18,8 bilhões, ou 27% do total devido.
O Conselho da Justiça Federal (CJF) tem dados segregados de pagamento de precatórios e Requisição de Pequeno Valor (RPV). Porém, os dados não representam o total que é desembolsado pela União, já que a Justiça Estadual pode condenar a União em casos envolvendo o INSS.
Segundo o CJF, a União já pagou R$ 31,8 bilhões em precatórios e R$ 9,7 bilhões em RPVs em 2020. Todos os precatórios da Justiça Federal previsto para 2020 foram quitados. Há somente a previsão de pagar aproximadamente R$ 3,5 bilhões em RPVs até o fim do ano.