A mudança promovida pela Câmara dos Deputados na Lei das Estatais, e que ainda precisa passar pelo Senado Federal, gerou uma série de críticas e uma forte reação negativa do mercado financeiro. Não apenas por ter sido feita de maneira sorrateira, em votação relâmpago e no fim da noite de terça-feira (13), mas por remontar um período de livre aparelhamento das empresas públicas por partidos políticos, que a lei tentou estancar.
A Lei das Estatais (13.303/2016), ou Lei de Responsabilidade das Estatais, foi aprovada e sancionada durante o governo interino de Michel Temer (MDB), enquanto Dilma Rousseff (PT) estava afastada da Presidência da República em razão do processo de impeachment que enfrentava. Parte de uma agenda moralizante, o texto foi proposto na esteira do escândalo bilionário de corrupção na Petrobras que veio à tona a partir das denúncias da Operação Lava Jato, a partir de 2014.
Segundo as investigações, o esquema envolvia contratos superfaturados fechados entre a Petrobras e empreiteiras por meio de diretorias da estatal loteadas por aliados do governo. Parte do dinheiro era então desviada para partidos, agentes políticos e funcionários da companhia, e para o pagamento de propina para empresas contratadas.
A lei veio para aperfeiçoar a gestão das estatais e blindá-las de interferências políticas que trouxessem prejuízos aos seus negócios. Para isso, o texto estabelece uma série de exigências para nomeação de diretores e conselheiros, um rígido programa de regras de conduta, normas para compras e licitações, e políticas de auditoria interna e transparência com a sociedade e investidores.
Lei aumentou rentabilidade das estatais, que tiveram lucro recorde em 2021
Gabriel Araújo Garcia, analista de equity research da Guide Investimentos, ressalta o impacto positivo que a Lei das Estatais teve nas finanças das empresas sob administração pública. “Desde que a lei foi aprovada em 2016, a rentabilidade sobre o patrimônio (RoE) da Petrobras e Banco do Brasil [BB] aumentaram sensivelmente”, escreveu em relatório para clientes divulgado nesta quarta-feira (14).
“No caso do BB, a rentabilidade atualmente é maior do que a dos bancos privados (Itaú e Bradesco, por exemplo), o que não acontecia antes da lei. No caso da Petrobras, a rentabilidade é sensivelmente maior. Em resumo, acabar com a Lei das Estatais deve ter impacto negativo sobre a rentabilidade dessas empresas e consequentemente sobre a cotação de suas ações na bolsa.”
Relatório divulgado em julho pela Secretaria de Coordenação e Governança das Empresas Estatais (Sest), do Ministério da Economia, mostrou que em 2021 o lucro líquido das 47 empresas controladas diretamente pela União somou R$ 187,7 bilhões, o maior resultado desde 2008. O faturamento chegou próximo a R$ 1 trilhão – mais precisamente, R$ 999,8 bilhões.
Na apresentação dos resultados, a equipe econômica do governo atribuiu os números justamente à profissionalização das estatais. “Com a consolidação de um sistema robusto de governança corporativa, devemos dedicar nossa capacidade ao desenvolvimento de uma melhor governança pública sobre as empresas estatais federais”, destacou o secretário de Coordenação e Governança das Empresas Estatais, Ricardo Faria.
“A Lei das Estatais fechou portas para o uso político das estatais, ao estabelecer impedimentos e requisitos para a nomeação em cargos de gestão e no conselho de administração”, disse recentemente o gerente de relações institucionais e governamentais do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), Danilo Gregório, à Gazeta do Povo.
Mudança na Lei das Estatais pode comprometer entrada do Brasil na OCDE
Para além dos balanços financeiros das empresas, a Lei das Estatais contou pontos para a entrada do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que atua como uma espécie de “clube das boas práticas” e do qual fazem parte principalmente países desenvolvidos.
Em um relatório publicado no fim de 2020, a organização reconheceu que conselhos de estatais brasileiras se tornaram mais independentes de interferências político-partidárias em razão das restrições impostas pela legislação. “A proibição para indicação de políticos e outros indivíduos em conflito de interesses provou ser bem-sucedida na redução de algumas formas de apadrinhamento político usando cargos de conselheiros e executivos”, afirma o documento.
Os efeitos positivos nos sistemas de governança e integridade das empresas públicas e de economia mista gerados pela Lei das Estatais são mensuráveis. Em 2017, o Indicador de Governança das Empresas Estatais (IG-Sest), criado pela Sest para avaliar o cumprimento de normas e boas práticas aplicáveis a estatais federais, ficou no patamar médio de 4,02 (de 10). Em 2022, as companhias de controle direto obtiveram mediana de 9,06 no indicador, enquanto as de controle indireto, de 9,68.
Mudança na Lei das Estatais já foi defendida por Bolsonaro, Lira e PT
Em junho, o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) também defendeu mudanças na Lei das Estatais. O líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), chegou a anunciar uma medida provisória para tanto, embora o ato jamais tenha sido levado a cabo. À época, Bolsonaro tentava por todas as vias possíveis baixar os preços dos combustíveis, e a intervenção direta na política de preços da Petrobras era um dos caminhos no radar.
O atual presidente da empresa, Caio Paes de Andrade, aliás, foi nomeado para o cargo apesar de não atender a todas as exigências da lei, como a experiência de no mínimo dez anos na área de atuação da estatal, ou de quatro anos em empresas de porte ou objeto social semelhante ao da companhia. Um de seus antecessores indicados por Bolsonaro, o general Joaquim Silva e Luna também teve a indicação questionada por descumprir o critério.
Na mesma época, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), fez coro a Bolsonaro e defendeu modificações na Lei das Estatais, que, segundo ele, “permitiriam maior sinergia entre estatais e o governo do momento”.
A opinião já era compartilhada pelo PT naquele momento. “Nós concordamos em mudar a Lei das Estatais. Se o deputado Lira quiser trazer a Lei das Estatais, nós concordamos. Porque é uma lei que criminaliza a política”, disse a presidente nacional do partido, deputada Gleisi Hoffmann (PT-PR), na tribuna da Câmara no dia 22 de junho. “Estatal é subordinada ao governo, e a maioria das ações da Petrobras são do governo. Então o governo, eleito pelo povo, tendo uma linha política, tem de dar linha para as estatais.”
Na segunda-feira (12), em meio aos rumores, posteriormente confirmados, de que o ex-ministro da Casa Civil de Dilma Rousseff (PT), Aloízio Mercadante, seria indicado à presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a consultoria Eurasia Group levantou a possibilidade de que Lula poderia editar uma medida provisória em seus primeiros dias de mandato para alterar a lei.
Isso porque um de seus artigos veda a indicação para conselho de administração ou diretoria de empresa controlada pelo poder público de qualquer “pessoa que atuou, nos últimos 36 meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral”. Além de ter atuado na campanha de Lula à presidência, Mercadante é presidente da Fundação Perseu Abramo, órgão de assessoramento do PT.
No mesmo dia, o próprio Mercadante, que atualmente coordena os grupos técnicos da transição, disse desconhecer “qualquer iniciativa” sobre a possibilidade de mudanças na Lei das Estatais. Na mesma linha, o ex-ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, um dos coordenadores do núcleo de economia da equipe de transição, afirmou não ter havido discussões sobre a legislação, embora tenha também elogiado o nome de Mercadante para qualquer cargo no governo.
Aliados do presidente eleito disseram ainda que não haveria impedimento legal para que o ex-ministro assumisse o banco de fomento, uma vez que a Fundação Perseu Abramo seria entidade independente, com registro de CNPJ próprio, além de ele não ter sido candidato a cargo público há 12 anos.
Relatório com alteração na lei foi protocolada 18 minutos antes de votação
Na terça-feira (13), passado das 22 horas, o plenário da Câmara aprovou o projeto de lei 2.896/2022 com uma emenda que reduz de 36 meses para 30 dias o período de quarentena exigido para que um ocupante de cargo decisório em partido possa ser indicado à diretoria ou ao conselho de estatal. A mudança teve amplo apoio de parlamentares do chamado Centrão, incluindo o PL de Bolsonaro.
O projeto de lei, de autoria da deputada Celina Leão (PP-DF), dispunha originalmente sobre o limite para gastos com publicidade por empresas públicas e de economia mista. O texto, que acabou aprovado pelo placar de 314 a 66, previa o aumento de 0,5% para até 2% da receita bruta operacional o limite de despesas de estatais com patrocínio e propaganda.
A emenda que altera a Lei das Estatais foi apresentada pelo deputado federal Felipe Carreras (PSB-PE), e recebeu a assinatura dos líderes do PSB, Bira do Pindaré (MA); PDT, André Figueiredo (CE); PT, Reginaldo Lopes (MG); e PCdoB, Renildo Calheiros (PE). Considerada um “jabuti” por opositores, a sugestão foi apelidada de “emenda Mercadante” por Marcel van Hattem (Novo-RS).
O protocolo da emenda ocorreu às 19h23, quando a sessão plenária já estava em andamento, com a votação de outros projetos. Já o parecer final da relatora, deputada Margarete Coelho (PP-PI), que acatou a redução no período de quarentena, entrou no sistema da Câmara dos Deputados às 21h38, 18 minutos antes do início da discussão do projeto.
A manobra foi duramente criticada pelo líder do Novo, deputado Tiago Mitraud (MG), que destacou o trecho do texto e encaminhou voto por sua supressão, relembrando os escândalos de corrupção ocorridos nos governos petistas. Antes disso, ele já havia tentado retirar a proposta de pauta, mas acabou vencido pela maioria do plenário.
“Querem novamente assaltar os cofres das estatais, e fazem isso por meio de um golpe já na tramitação de um projeto que não trata de quarentena para assumir estatais, reduzindo de 36 meses para um mês a chamada quarentena”, disse. “Nem deveriam chamar de quarentena. Chamem de férias, porque o que dura 30 dias é férias, não é quarentena.”
Correligionário de Mitraud, o deputado Paulo Ganime (RJ) endossou o discurso. “Esperávamos que o golpe viesse através de uma medida provisória, mas, não, veio na cara de pau, através de um projeto que nada tem a ver com o tema, que tem, sim, a ver com a Lei das Estatais, uma lei que veio para combater a corrupção no auge dos esquemas de corrupção do PT no Brasil, veio para tentar estancar a sangria que havia nos cofres das estatais”, declarou.
“Agora estão subvertendo tudo. É um absurdo. E a população não está vendo isso porque esse artigo não estava previsto no PL. Era para se falar de patrocínio esportivo, mas estão mudando a quarentena do Mercadante”, acrescentou Ganime.
Além do Novo, apenas o PSDB orientou voto contra o projeto. O PL defendeu a aprovação do texto-base e, na sequência, a rejeição da emenda. Apesar disso, a mudança na Lei das Estatais foi mantida com 223 votos favoráveis e 123 contrários.
“Imaginando que, talvez, não tenhamos sucesso, convido o presidente Bolsonaro, se ainda lhe resta algum colhão, a vetar esse projeto, se for aprovado pelo Congresso”, disse Mitraud. “Saia da toca, Bolsonaro, e vete esse absurdo aqui. Faça pelo menos um último ato digno na sua presidência e impeça que o PT volte a colocar corruptos no comando das estatais brasileiras. Ao menos isso o Brasil espera de você”, concluiu.
A possibilidade de alteração na lei, que ainda precisa do aval do Senado, já gera reação do mercado desde a segunda-feira, quando ainda não passava de uma hipótese. O dólar subiu 1,3% na segunda, fechou o dia estável na terça e chegou a operar em alta de 1% na manhã desta quarta, embora depois tenha perdido o fôlego. O Ibovespa – principal termômetro da B3, a bolsa brasileira – caiu 2% na segunda e 1,7% na terça. Por volta das 15h desta quarta, perdia mais 1,3%. Ao fim do dia, o índice encerrou com alta de 0,2%.
“A decisão tomada ontem [terça-feira] pela Câmara foi um retrocesso”, avalia Sílvio Campos Neto, economista e sócio da Tendências Consultoria. “Há um claro afrouxamento das regras, ao permitir que pessoas com um passado político bem recente ocupem cargos em estatais”, diz.
O Instituto Não Aceito Corrupção lançou nota em que critica a decisão dos deputados. “Conclamamos ao Senado Federal a reversão dessa votação relâmpago, sorrateira, oportunista, casuísta e na contramão do interesse público, realizada na calada da noite de ontem [terça], através de um trâmite normal com maior discussão, ponderação, visando os interesses democráticos e constitucionais tão caros à nação brasileira”, diz trecho do texto.
Colaborou Vandré Kramer
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