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De quase 5 mil proposições legislativas relacionadas ao sistema tributário apresentadas à Câmara dos Deputados desde a promulgação da Constituição de 1988, apenas 5% visaram tornar o regime mais progressivo. A conclusão é de um estudo recente conduzido por pesquisadores do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), da Universidade de São Paulo (USP), com apoio da Samambaia Filantropia.
Um sistema tributário progressivo é considerado mais justo porque recolhe mais de quem dispõe de mais recursos, ou seja, de quem tem mais renda e patrimônio. No Brasil, no entanto, a cobrança de impostos se concentra no consumo, pesando proporcionalmente mais sobre os mais pobres, que destinam a maior parte ou a totalidade de seus rendimentos na aquisição de bens e serviços.
De acordo com dados Secretaria do Tesouro Nacional, do Ministério da Economia, em 2021, 43,5% da arrecadação de União, estados de municípios veio de tributos sobre o consumo, como PIS, Cofins, IPI, IOF, Cide, DPVAT, ICMS e ISS. Países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) arrecadam, em média, 10% de suas receitas com esses tributos, segundo o estudo.
Segundo a nota técnica “O que o Congresso brasileiro prefere em matéria tributária”, produzida pela equipe do CEM, o Legislativo é bastante ativo na proposição de mudanças na legislação de impostos, mas o comportamento dos parlamentares não objetiva reformar essa regressividade do sistema.
Eduardo Lazzari, Marta Arretche e Rodrigo Mahlmeister encontraram 4.841 projetos de lei ordinária ou complementar, medidas provisórias e propostas de emenda à Constituição (PEC), do período entre 1º de janeiro de 1989 e 31 de dezembro de 2020, relacionadas ao tema na Câmara. “Essa cifra representa uma média de 154 proposições ao ano, o que está longe de caracterizar baixa prioridade parlamentar a esse tipo de matéria”, dizem.
O maior interesse dos deputados federais na área tributária, no entanto, tem sido a concessão de benefícios fiscais. Do conjunto de proposições analisadas, 67,2% criavam despesa dedutível do Imposto de Renda (IR), isenção do mesmo tributo ou do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) ou ainda um regime especial, beneficiando grupos específicos.
Os números levantados indicam que parlamentares de regiões mais pobres priorizam regimes especiais, ao passo que os que representam áreas mais prósperas priorizam deduções do IR. A análise geográfica mostra ainda que, de forma geral, as bancadas de todas as regiões apresentam patamar baixo de proposições consideradas progressivas. Deputados federais da região Nordeste, entretanto, submeteram um número maior, enquanto os das regiões Sul e Norte apresentaram taxa inferior à média.
Para os pesquisadores, além do peso desproporcional dos impostos sobre consumo, considerados indiretos, a baixa importância dada à tributação sobre propriedade e o tratamento privilegiado dado a rendimentos de capital estão entre os fatores que fazem com que o sistema tributário brasileiro amplie a desigualdade de renda no país.
Em 2021, apenas 4,8% do que foi recolhido por todos os níveis de governo veio de tributos sobre patrimônio, como ITR, IPTU, ITBI, ITCD e IPVA. “A propriedade de bens, que aumenta à medida que aumenta a renda, é muito pouco taxada no Brasil”, diz trecho da nota técnica.
Já as alíquotas do IR, além de baixas quando comparadas às taxas praticadas por países desenvolvidos ou em nível de desenvolvimento semelhante ao do Brasil, também conferem tratamento privilegiado aos rendimentos auferidos pelo capital, com redução de sua incidência. Alienação de imóveis, ganhos com ativos financeiros e lucros, por exemplo, são comparativamente menos taxados do que salários.
Há ainda brechas para que altos salários sejam enquadrados como rendimentos de capital. Lucros e dividendos auferidos como pessoa jurídica e distribuídos para acionistas, por exemplo, são isentos de Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF).
Falta de correção na tabela do IRPF aumentou carga tributária sobre mais pobres
Adicionalmente ao modelo de tributação sobre renda, a falta de atualização na tabela do IRPF desde 2016 tem aumentado a carga tributária e penalizado de maneira mais acentuada o contribuinte de menor renda.
Dados do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco) apontam que em 1996 eram considerados isentos do imposto contribuintes que ganhavam até nove salários mínimos. Hoje, esse índice está em 1,73 salários mínimos, de acordo com estudo publicado no início do ano pela entidade.
Se houvesse uma política de correção das alíquotas do IRPF com base no IPCA, estariam livres do imposto quem recebe até R$ 4.427,59 mensais – hoje a faixa de isenção cobre renda de até R$ 1.903,98. A defasagem média da tabela do IRPF chega a 134,52%, segundo o Sindifisco.
No ano passado, o governo de Jair Bolsonaro encaminhou ao Congresso um projeto de lei (PL 2.337/2021) de reforma do IR com caráter progressivo em termos tributários. Entre as medidas previstas estavam o aumento na faixa de isenção do IRPF (dos atuais R$ 1.903,98 para R$ 2,5 mil) e a tributação em até 20% sobre lucros e dividendos e em 15% os rendimentos de fundos de investimento imobiliário (FII).
O texto, no entanto, acabou bastante desidratado durante a tramitação na Câmara e está parado desde setembro no Senado, onde não tem perspectivas de prosperar na atual legislatura.
Progressividade no IRPF diminuiu desde a redemocratização
Um estudo do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades (Made), também da USP, mostra, de forma semelhante, que apenas 15% das mudanças legislativas no IRPF aprovadas nas últimas décadas tiveram o objetivo de alterar a distribuição de renda.
Ao todo, foram analisadas 118 leis que mudaram regras do imposto entre 1947 e 2020. Dessas, 28% foram justificadas como formas de aumentar o crescimento econômico de longo prazo e 20% de modernizar o sistema tributário. O restante dispunha sobre questões de curto prazo, como inflação, arrecadação e cenários de crise.
No período da ditatura militar (1964-1985), houve mais leis baseadas na distribuição de renda, especialmente a partir de 1975, mas sua adoção não foi suficiente para reverter a tendência de aumento da concentração de renda durante o período.
Já durante a redemocratização, há poucas leis motivadas por uma preocupação com a desigualdade de renda, e a justificativa mais comum para as propostas de mudanças no IRPF são de “modernização” do tributo.
“Podemos afirmar que, desde a redemocratização, a diferença de alíquota efetiva de quem recebe 15 vezes a renda média em relação a quem recebe três [vezes a renda média] tem constantemente sido reduzida, indicando uma queda efetiva da progressividade do sistema tributário”, concluem os autores Nikolas Shiozer, João Victor Sales Marcolin, Isabella Comini Bouza e João Pedro Viegas de Moraes Lemes.
Essa perda de progressividade pode ainda estar subestimada, uma vez que não foram consideradas isenções, abatimentos e deduções, apenas a alíquota efetiva dos impostos.
Outro estudo do Made, este de autoria de Rodrigo Toneto, Theo Ribas e Laura Carvalho, de 2020, apontava que a elevação da tributação no topo da pirâmide para transferir renda para a base pode ser um instrumento de recuperação da atividade econômica.
Com base na Pesquisa de Orçamentos Familiares do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o levantamento mostra que enquanto os 10% mais pobres gastam cerca de 90% de sua renda adicional em consumo, esse índice cai para 24% entre o 1% mais rico.
Levando em consideração a atual estrutura distributiva da economia brasileira e as distintas propensões a consumir em cada estrato de renda, os autores sugerem que cada R$ 100 transferidos do 1% mais rico para os 30% mais pobres são capazes de gerar uma expansão de R$ 106,70 na economia.