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Uma proposta de emenda à Constituição (PEC) inicialmente desenhada para ajudar o futuro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e uma decisão apertada do Tribunal de Contas da União (TCU) se transformaram em tábua de salvação para o fechamento das contas do governo de Jair Bolsonaro (PL), que dias atrás reconheceu a falta de espaço fiscal para executar despesas importantes neste fim de ano.
O problema não é falta de dinheiro: o governo tem R$ 15,5 bilhões em recursos "empoçados" nos ministérios, em geral por questões burocráticas ou rigidez orçamentária, segundo levantamento do Ministério da Economia divulgado pelo jornal Valor Econômico. A questão é que o governo não pode efetuar despesas além do teto de gastos, principal regra fiscal do país. Com isso, um total de R$ 15,4 bilhões em gastos teve de ser contingenciado, isto é, bloqueado.
De acordo com o Ministério da Economia, o governo foi obrigado a bloquear despesas de todos os ministérios por causa de gastos acima do esperado que extrapolariam o teto. Seriam R$ 13 bilhões na Previdência Social e quase R$ 4 bilhões com a Lei Paulo Gustavo.
"Com isso, despesas importantes que seriam realizadas neste ano ou no começo de 2023 não poderão mais ser empenhadas e praticamente todas as despesas discricionárias que seriam pagas em dezembro estão suspensas", informou a pasta.
O bloqueio provocou a suspensão de serviços públicos, como a emissão de passaportes, e o INSS avisou que poderia paralisar suas atividades. Até mesmo o pagamento de aposentadorias e pensões estaria em risco, segundo especialistas.
Embora a nota do Ministério da Economia tenha assegurado na segunda-feira (5) o pagamento dos benefícios previdenciários, a solução para eles só veio na quarta (7), e por uma decisão do TCU. Em resposta a uma consulta da Casa Civil, o tribunal autorizou o governo federal a abrir crédito extraordinário por meio de medida provisória, e fora do teto de gastos, para cobrir os gastos do INSS. Quatro ministros foram favoráveis e três, contrários.
Como a PEC fura-teto de Lula pode ajudar o governo Bolsonaro
A PEC fura-teto (32/2022), chamada de PEC da transição pelos aliados de Lula, foi elaborada para permitir o pagamento de promessas de campanha de Lula, como a manutenção do Auxílio Brasil em R$ 600 (mais um adicional de R$ 150 por criança de até 6 anos) e o aumento real do salário mínimo, além da recomposição do orçamento de programas que teriam verba cortada em 2023.
A articulação do texto também possibilitou ao presidente eleito antecipar a construção de sua base governista e equilibrar forças com o protagonismo do Congresso.
Mas o texto que saiu do Senado – e que ainda depende do aval da Câmara – pode assegurar, já neste fim de ano, o desbloqueio de verbas e a execução orçamentária de despesas obrigatórias e até discricionárias (aquelas que podem ser ou não executadas).
O texto aprovado pelo plenário do Senado, em dois turnos, nesta quarta, deixa de fora do teto de gastos um limite de até 6,5% em receitas extraordinárias do governo para gastos com investimentos. O cálculo tomou como base o ano de 2021 e corresponde a cerca de R$ 23,9 bilhões. A proposta avalizada pelos senadores prevê que o montante pode ser empenhado pelo governo federal ainda neste ano, em vez de valer apenas de 2023 em diante.
O espaço orçamentário adicional foi calculado por lideranças do gabinete de transição de Lula e da base de Bolsonaro de modo a prever o desbloqueio de R$ 7,7 bilhões para as emendas de relator, conhecidas como "orçamento secreto". E os R$ 16,2 bilhões restantes possibilitarão ao governo destravar os R$ 15,4 bilhões contingenciados.
Ainda assim, surpreendentemente, os dois principais partidos da base aliada de Bolsonaro no Congresso – PL e PP – orientaram voto contrário ao texto da PEC aprovado.
Como é o bloqueio de recursos e quais serviços estão ameaçados
O economista Geraldo Biasoto Júnior, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e ex-coordenador de política fiscal do Ministério da Fazenda durante o governo Fernando Henrique Cardoso, aponta que o país não vive um problema "grave" de receitas. "As receitas existem e o governo vai ter até superávit, provavelmente. O problema é o teto de gastos", afirma.
As verbas contingenciadas são, portanto, um orçamento não autorizado para não explodir o teto, continua Biasoto. "Embora até exista esse dinheiro, tenha receita para fazer o gasto, a estrutura do teto é um impeditivo por não permitir gastar mais do que o valor do outro ano mais a inflação", explica.
O contingenciamento é uma forma do governo federal não autorizar que um órgão público empenhe contratos e execute recursos específicos, por exemplo. A medida tem sido adotada para impedir o Executivo de extrapolar o teto de gastos, o que poderia levar Bolsonaro a incorrer em crime de responsabilidade fiscal.
"A estrutura do Estado está toda distorcida, porque você foi cortando onde não era obrigado a gastar, até o limite, mas já passamos do limite", diz Biasoto, para quem o teto levou à forte redução do investimento público.
Além da suspensão da emissão de passaportes e das dificuldades do INSS, as universidades públicas federais também estão sem dinheiro para limpeza e pagamento de contas de luz, água e segurança em dezembro, conforme atestou a reitoria da Universidade Federal do ABC (UFABC) em nota à comunidade publicada na segunda-feira (5).
No mesmo dia, o ministro da Educação, Victor Godoy, admitiu a integrantes do gabinete de transição de Lula não ter recursos para pagar cerca de 14 mil médicos residentes e 100 mil bolsistas da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) em dezembro. "Registramos, naturalmente, a questão da dificuldade orçamentária, que hoje é o que mais nos preocupa", disse a jornalistas.
O Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) alertou o governo para uma "paralisação total" das atividades, segundo ofício revelado pela Folha de S. Paulo.
O contingenciamento também atinge outros serviços, como o programa Farmácia Popular; a logística para distribuição de medicamentos e insumos para os indígenas, além de investimento para o combate à Covid-19 nas aldeias; e áreas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), como pesquisa, atendimentos e a construção de uma fábrica de vacinas.
O que explica a paralisia fiscal e quando os serviços serão retomados
O contingenciamento orçamentário e a falta de recursos para pagar imediatamente algumas despesas é fruto de prioridades da gestão Bolsonaro e de sua base política, admitem reservadamente dois interlocutores do governo à Gazeta do Povo.
Ambos afirmam que o ano eleitoral promoveu a alocação de verbas discricionárias para áreas consideradas mais estratégicas para a reeleição do presidente e o sucesso de aliados, a exemplo da destinação de recursos para o orçamento secreto.
Em razão disso, as fontes afirmam que a falta de recursos é disseminada e afeta até políticas públicas sociais dos ministérios da Cidadania e o da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, que lida com a paralisia de serviços dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAs) e de programas como o Criança Feliz.
E ainda que a PEC fura-teto possibilite o desbloqueio dos R$ 15,5 bilhões contingenciados, os interlocutores alertam que a execução orçamentária demandaria tempo e colocam em xeque o ritmo de retomada de serviços e programas.
O próprio Ministério da Economia afirmou em nota que, "até meados deste mês", é "possível" que o novo relatório de avaliação de receitas e despesas dê mais clareza sobre o volume de despesas obrigatórias.
O relatório apontado pela equipe econômica pode ficar pronto apenas após 19 de dezembro, segundo o Valor. "Caso haja esse relatório extemporâneo e dele decorra a abertura de espaço fiscal em relação ao teto de gastos, do ponto de vista financeiro, os pleitos dos ministérios serão analisados e, sempre que possível, atendidos", informa a equipe econômica.
O economista Aod Cunha, ex-secretário de Fazenda do Rio Grande do Sul e ex-diretor do banco JP Morgan, diz que o cenário é desafiador para o governo. "Não é só liberar recurso, depende da velocidade de execução de cada área, dos empenhos, e é uma questão processual de cada área. É importante ter noção que não é rápido assim, com recursos já sendo alocados na ponta. Tem que empenhar, ter a liberação e, às vezes, tem que ter o projeto", afirma.
O especialista avalia que a paralisia fiscal é fruto das escolhas feitas pelo governo e destaca que o teto de gastos foi proposto justamente com o intuito de que governos definam suas prioridades. Defensor do teto, Cunha considera que existe uma "crítica exagerada" sobre o dispositivo.
"O teto conseguiu, sim, durante um bom tempo, impor limite à despesa pública e puxou a taxa de juros para baixo. Mas diria que se mostrou problemático no meio político, às vezes para o próprio governo fazer escolhas e a definição de despesas públicas", comenta. "Com as escolhas feitas faltaram recursos em algumas frentes, mas o problema não é de receitas", complementa.
O economista considera que o teto cumpriu uma importante função e foi positivo ao dar previsibilidade para o cenário fiscal e contribuir para que o país tivesse uma baixa taxa de juros. "Poderia ter tido uma transição e flexibilidade na direção do teto, mas sinceramente acho temerário tirar a regra do teto sem ter uma regra fiscal que seja claramente superior, e eu ainda não vi isso. A gente está dando um 'waiver' fiscal [licença para gastar] grande que, na prática, derruba o teto, sem saber qual vai ser a nova regra fiscal", analisa.
Quais as estratégias do governo em relação à PEC fura-teto
Caso a PEC fura-teto seja mal sucedida, o governo federal cogita pedir a abertura de crédito extraordinário fora do teto por meio de medida provisória, aproveitando a autorização concedida pelo TCU após consulta da Casa Civil.
Porém, o cenário mais provável trabalhado pelo governo é assegurar a aprovação dos R$ 23,9 bilhões adicionais fora do teto. Na articulação da proposta no Senado, após pressão da base de Bolsonaro, a ampliação artificial do teto de gastos – usada para viabilizar o Auxílio Brasil e outros gastos – foi reduzida para R$ 145 bilhões, fazendo com que o impacto fiscal da PEC caísse de quase R$ 200 bilhões para aproximadamente R$ 169 bilhões.
Tudo isso ainda depende de aprovação da Câmara dos Deputados, que vai analisar a PEC na semana que vem. Caso a Casa altere o texto, ele retornará ao Senado.
O economista Geraldo Biasoto considera que um extrateto entre R$ 80 bilhões e R$ 100 bilhões seria o suficiente para o governo eleito tocar o primeiro ano de gestão. "Se o Congresso aceitar dois anos já seria um grande lucro ao PT. Mas o que falta é uma proposta para substituir o teto", diz.
O professor da Unicamp diz que há outros mecanismos para assegurar a responsabilidade fiscal. "A regra de ouro [que impede a contratação de dívida para bancar gastos correntes] é ótima, está na Constituição, é só cumprir. A Lei de Responsabilidade Fiscal também, mas a gente não tem mecanismo de controle de endividamento. Com duas ou três medidas, podemos fazer um arcabouço fiscal muito melhor do que a regra do teto e isso poderia estar na PEC também", diz.
O economista Aod Cunha considera que entre R$ 70 bilhões e no máximo R$ 80 bilhões de gastos extrateto em um ano seriam suficientes para contemplar todas as promessas da campanha de Lula. "Seria um montante razoável, transitório e bom até se discutir uma nova regra fiscal", avalia. Da forma como o texto está desenhado, porém, ele se mostra contrário.
"Se a opção por expansão fiscal for desse tamanho, sem ter regra fiscal, ela vai gerar uma pressão adicional e incerteza em momento onde já temos expectativa de crescimento baixo para o próximo ano. É uma opção equivocada, tanto do Congresso quanto do governo", diz. "A gente não sabe qual vai ser o critério de reajuste e como vai crescer a despesa que está fora [do teto]", complementa.