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O atual modelo de concessões rodoviárias dá sinais de esgotamento. A carteira de projetos é grande, mas leilões recentes atraíram poucos concorrentes, com pouca ou nenhuma participação de estrangeiros, mesmo estando em jogo "joias da coroa" como a rodovia Presidente Dutra.
O cenário se complica com a redução gradual da oferta de rodovias de alto tráfego – mais rentáveis e, portanto, atraentes para o setor privado. Cedo ou tarde o governo terá de encarar a missão de conceder a malha rodoviária que corta regiões de menor atividade econômica e com lucro potencial bem menor aos concessionários.
Na licitação da rodovia Presidente Dutra (BR-116), que liga Rio a São Paulo, e da Rio-Santos (BR-101), realizada no fim de outubro, apareceram apenas dois interessados, ambos nacionais: o grupo CCR e a Ecorodovias.
O edital da BR-381/262, que liga Belo Horizonte a Governador Valadares (MG) e Viana (ES), na Grande Vitória, lançado em outubro, foi retirado para aperfeiçoamentos pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).
O leilão do trecho Norte do Rodoanel – contorno da região metropolitana de São Paulo, que demandaria investimentos de R$ 2,6 bilhões para a conclusão do trecho de 44 quilômetros – foi adiado no fim de abril devido às incertezas geradas pela crise econômica, aponta a Agência de Transporte de São Paulo (Artesp).
“Faltam mais investidores, principalmente estrangeiros. Quem está no Brasil já se acostumou com a incerteza macroeconômica”, afirma o presidente da consultoria Inter.B, Cláudio Fritschak. E para agravar o cenário, segundo ele, há o aumento da imprevisibilidade regulatória nos últimos anos.
Ele diz que a Lei das Agências, sancionada em 2019 pelo presidente Jair Bolsonaro, teve artigos vetados erroneamente e permitiu indicações políticas para os órgãos reguladores. O que também afeta a vinda de novos investidores em infraestrutura para o Brasil é a imagem institucional do país, avalia o consultor. “Há problemas na questão ambiental, na dos indígenas”, diz.
Também pesa a questão fiscal, que dificulta a realização de investimentos por parte do governo federal, aponta a gerente executiva de economia da Confederação Nacional do Transporte (CNT), Fernanda Schwantes. “Os recursos públicos estão comprometidos com despesas relacionadas à dívida e com obrigações constitucionais.”
Ela destaca que, mesmo com uma maior participação do investimento privado no segmento rodoviário – que deve chegar perto de 32% neste ano, segundo a Inter.B –, é necessária a aplicação de recursos públicos. “O investimento privado complementa o público. Não se consegue conceder toda a infraestrutura”, diz a executiva.
Necessidade de novos modelos para concessão de rodovias
Mas não são só questões macroeconômicas que criam entraves ao investimento em infraestrutura rodoviária. “É necessário inovar, desenvolver novos modelos”, diz Fritschak.
Um estudo realizado por Rennaly Souza e Edison Benedito da Silva Filho, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ligado ao Ministério da Economia, aponta três modelos alternativos que poderiam viabilizar novos investimentos em rodovias:
- Concessões com fundo público
- Concessões em blocos, também conhecido como “file com osso”
- Câmara de compensação
“Entendendo o financiamento como questão central para o planejamento e execução de serviços de infraestrutura, soluções que contemplem a eficiência na gestão de recursos e a atração de capitais privados para projetos de infraestrutura são essenciais para viabilizar a expansão dos investimentos”, afirmam Souza e Silva Filho.
Eles observam que, para grande parte das rodovias concedidas no passado, o risco de demanda não prejudicou sensivelmente a lucratividade das concessões, pois elas envolviam trechos de elevado tráfego em função de sua localização em regiões mais prósperas e com os maiores investimentos já amortizados.
Os especialistas do Ipea destacam que a realidade é diferente para regiões de menor atividade econômica e PIB per capita menor.
“A cobrança de pedágios nesses projetos é insuficiente para atingir um patamar de remuneração do investidor privado suficiente para custear os investimentos dele requeridos, sendo necessária então a participação governamental, não apenas na regulação, mas também como fonte de receita adicional aos projetos, por meio das concessões subsidiadas”, dizem os pesquisadores.
Modelos de concessões com fundo público
Uma das estratégias citadas por Souza e Silva Filho é a realização de concessões com a criação de um fundo público, que funcionária como instrumento de captação de recursos para investimentos em políticas públicas. Ela necessita de autorização legislativa. No Brasil, é popularmente conhecido como parceria público-privada (PPP).
As PPPs introduzem a gestão privada no serviço público por meio de vínculo contratual de longo prazo entre o operador e uma autoridade pública. Elas podem ser realizadas por dois meios: a administrativa, em que a remuneração se dá por meio de contraprestação pública, sem cobrança dos usuários, e a patrocinada, que envolve a cobrança de tarifa dos usuários e a contraprestação pecuniária do parceiro público ao privado de forma complementar ao recurso arrecadado via tarifa.
“A estrutura de financiamento desempenha um papel fundamental para uma relação exitosa. A instituição de mecanismos de proteção de investimentos e a alocação de riscos de maneira eficiente permite redução do comprometimento financeiro do setor público”, dizem os especialistas.
A primeira tentativa de aplicar esse modelo no Brasil foi em 2006, com o edital de concessão para a reestruturação, manutenção e ampliação da capacidade da BR-116 (Rio-Bahia) e da BR-324. Porém, um ano depois, após novos estudos de viabilidade, o projeto foi abandonado.
A primeira rodovia a usar o mecanismo de PPP foi a MG-050, que liga a região metropolitana de Belo Horizonte à divisa com São Paulo, atendendo 50 cidades das regiões central, centro-oeste e sul de Minas. O contrato passou por oito termos aditivos desde a sua assinatura, em julho de 2007, e a concessionária foi alvo de processos administrativos para apuração de irregularidades na execução do contrato.
Atrasos e não execuções do contrato, prejudicando usuários e afetando a melhoria na qualidade do serviço prestado, fizeram com que que a concessionária fosse autuada e multada. Um novo cronograma de execução de obras foi assinado em maio de 2017. Segundo a CNT, no fim de 2021, os 337 quilômetros da rodovia estavam em estrado regular de manutenção.
“As crises fiscais afetam fortemente os investimentos em manutenção e ampliação da rede rodoviária que fazem uso desse mecanismo. Além disso o fundo de usos públicos deve dedicar atenção à mensuração das obrigações financeiras assumidas pelo setor público em contratos de PPs, de forma a evitar que recaia sobre o Tesouro o ônus da falta de cumprimento das obrigações”, explicam os especialistas do Ipea.
Modelo de concessões em blocos
Também conhecido como modelo “filé com osso”, o modelo da concessão em blocos está sendo utilizado na licitação de aeroportos. Ele tem por princípio a utilização de projetos atrativos como âncora junto a projetos deficitários, formando blocos a serem concedidos à iniciativa privada.
Segundo Souza e Silva Filho, essa modalidade tem se mostrado uma alternativa viável para a entrada de investimentos privados em infraestrutura, além de representar menores gastos com subsídios por parte do governo.
É um modelo que só foi aplicado ao setor rodoviário em janeiro de 2020, em São Paulo, com a concessão do corredor rodoviário Piracicaba-Panorama à gestora de patrimônio Pátria e ao fundo soberano de Cingapura. A concessão, estabelecida para um prazo de 30 anos, abrange 1.273 quilômetros de rodovias que serão modernizadas e ampliadas.
Os especialistas do Ipea apontam que um dos fatores que garantiu a atratividade do empreendimento foi o baixo valor exigido pela outorga fixa. O vencedor foi aquele que ofereceu o maior ágio sobre o valor proposto. E, a cada quatro anos, o projeto será revisto para a possibilidade de adequação de novos investimentos nas pistas.
Outro projeto que usou esse meio, foi a nova concessão da rodovia federal Presidente Dutra (BR-116), que liga o Rio de Janeiro a São Paulo. O projeto incorporou também a Rio-Santos (BR-101) e foi vencido pelo grupo CCR.
As experiências, de acordo com os pequisadores, são muito recentes. Há alguns riscos, como a consideração sobre os critérios para a seleção das rodovias a serem agregadas em bloco, que pode levar a riscos políticos. Outro problema, de natureza técnica, é a avaliação da eficiência do uso de recursos públicos dentro de um mesmo grupo de projetos concedidos em conjunto. “A formação de um bloco pouco eficiente pode trazer perda de resultados", dizem os especialistas.
Modelo de câmara de compensação
O modelo de câmara de compensação ou clearing, que tem por base a criação de um sistema que explora a possibilidade de compensação financeira entre diferentes operadores de uma rede, sejam eles superavitários ou deficitários, é um modelo que ainda não foi testado no segmento rodoviário no Brasil.
É mais usada no transporte público urbano, como é o caso do sistema metroviário de São Paulo. “As câmaras de compensação podem ter a gestão da receita tarifária controlada tanto pelo poder público quanto pelos operadores do sistema.”
No segmento rodoviário, a principal experiência é do desenvolvimento do sistema japonês de vias expressas, que tem mais de 9 mil quilômetros e começou a ser implantado na década de 1970.
O estudo do Ipea mostra que o governo do Japão estabeleceu a meta de construir uma rede nacional de vias expressas, incluindo rotas que passam por áreas rurais e transpondo obstáculos naturais como montanhas e rios, com encarecimento significativo dos projetos.
A experiência japonesa demonstra que a combinação das receitas de pedágio pode contribuir para a expansão da rede por meio de subsídios cruzados, desenvolvendo segmentos não lucrativos e mantendo níveis de pedágio relativamente consistentes ao longo da rede. Mas, com o passar do tempo, o sistema passou a ser deficitário.
Um estudo realizado pelo consórcio BR-500, com a cooperação técnica da Empresa de Planejamento e Logística (EPL), indica, como solução ao esgotamento do sistema de concessões, a criação de um modelo no qual a malha federal de rodovias funciona como um sistema integrado. Ele toma por base a instituição de uma política tarifária nacional, a criação de classes de rodovias e a implantação de uma câmara de compensação para equilibrar as tarifas de pedágio.
O estudo argumenta que uma maior equivalência entre o valor cobrado do usuário e a qualidade do serviço e infraestrutura disponibilizados também permitirá a otimização da aplicação de recursos originados da arrecadação da tarifa de pedágio, podendo reduzir a dependência de recursos públicos para a manutenção do sistema rodoviário.
A ideia, segundo os especialistas do Ipea, seria garantir a sustentabilidade do sistema, permitindo que eventuais riscos e desequilíbrios de concessões sejam diluídos no próprio sistema. Mas eles apontam que, dadas as limitações existentes no atual marco regulatório do setor, seria necessária a apresentação de proposta legislativa específica que discipline, de forma geral, as condições de implantação do sistema.