A selva amazônica já engoliu o Campo de Golfe Winding Brook; as cheias acabaram com o cemitério, deixando uma pilha de cruzes de cimento. O hospital de cem leitos projetado pelo aclamado arquiteto de Detroit, Albert Kahn? Foi destruído por saqueadores.
Dada a decadência e decrepitude desta cidadezinha fundada em 1928 pelo industrial Henry Ford, nos confins da Bacia do Rio Amazonas, eu não esperava me deparar com as casas majestosas e bem-preservadas na Palm Avenue, mas lá estavam elas, graças aos grileiros.
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“Esta rua era o paraíso dos saqueadores; os ladrões levaram móveis, maçanetas, tudo o que os norte-americanos deixaram para trás. Pensei comigo: ‘Ou eu ocupo esse pedaço da história, ou ele também vai virar ruína, como o resto de Fordlândia’”, conta Expedito Duarte de Brito, leiteiro aposentado de 71 anos que mora em uma das mansões construídas para os gerentes de Ford naquela que foi projetada para ser uma cidadezinha agrícola utópica.
Ford, o fabricante de automóveis que é considerado um dos fundadores dos métodos de produção em massa industriais nos EUA, planejou erguer Fordlândia para produzir sua própria fonte da borracha, necessária para a fabricação dos pneus e de peças como válvulas, mangueiras e juntas.
Ao fazê-lo, mergulhou em um setor marcado pelo imperialismo e alegações de subterfúgio botânico. O Brasil era rico em Hevea brasiliensis, a cobiçada seringueira, e a Bacia Amazônica se viu em franca expansão de 1879 a 1912 graças à necessidade das indústrias norte-americana e europeia da matéria-prima.
Porém, para horror dos líderes locais, o botanista e explorador britânico Henry Wickham conseguiu tirar milhares de sementes de Hevea de Santarém, obtendo o estoque genético necessário para cultivar plantações nas colônias britânicas, holandesas e francesas na Ásia.
Essas empreitadas do outro lado do mundo destruíram a economia borracheira brasileira, mas Ford desprezava a dependência dos europeus, temendo receber uma proposta de Winston Churchill para a criação de um cartel. Assim, em uma decisão que agradou o governo brasileiro, Ford adquiriu uma área gigantesca de terra na Amazônia.
Desde o início, a inépcia e a tragédia se abateram sobre a empreitada, meticulosamente registrada em um livro escrito pelo historiador Greg Grandin. Desprezando a palavra dos especialistas que poderiam lhes ter dado conselhos valiosos sobre a agricultura tropical, os homens de Ford plantaram sementes de valor questionável e deixaram as ervas daninhas e a ferrugem tomarem conta das plantações.
Cidade em estilo americano
Apesar dos reveses, Ford construiu uma cidadezinha no melhor estilo norte-americano, que ele queria que fosse habitada por brasileiros talhados para o que considerava os “valores dos EUA”.
Seus empregados, então, se mudaram para os chalés de madeira, projetados, obviamente, em Michigan; alguns, por sinal, continuam de pé. Lampiões de gás iluminavam as calçadas de concreto. Trechos delas ainda existem, próximos a hidrantes vermelhos, à sombra de salões de baile decadentes e galpões caindo aos pedaços.
“Pelo que se viu, não foi só em Detroit que Ford produziu ruínas”, comenta Guilherme Lisboa, 67 anos, dono da pequena Pousada Americana.
Além de produzir borracha, Ford, abstêmio explícito, antissemita e cético em relação à Idade do Jazz, obviamente queria que a vida na selva fosse mais transformativa: seus gerentes, todos norte-americanos, proibiam o consumo de bebidas alcoólicas, ao mesmo tempo em que promoviam jardinagem, danças de salão e a leitura da poesia de autores como Emerson e Longfellow.
Completando a missão utópica de Ford, as equipes de saneamento atravessavam a cidade matando animais de rua, acabando com as poças d’água onde os mosquitos transmissores de malária podiam se multiplicar e examinando os funcionários para ver se tinham doenças venéreas.
“Com a determinação e a total falta de curiosidade que lhe eram peculiares, Ford recusou deliberadamente os conselhos dos especialistas e se dispôs a transformar a Amazônia no Meio-Oeste da sua imaginação”, Grandin escreveu em seu relato.
Hoje em dia, as ruínas de Fordlândia permanecem como testamento da sandice que foi tentar submeter a selva à vontade do homem.
Visando promover o automóvel como forma de recreação – junto com o campo de golfe, as quadras de tênis, o cinema, as piscinas –, os gerentes fizeram 48 km de estrada ao redor da cidade, mas os carros quase não transitam pelas vias enlameadas, perdendo feio para as motos, presentes em toda a região amazônica.
Ao final da Segunda Guerra Mundial já estava claro que o cultivo das seringueiras em Fordlândia não seria rentável por causa da ferrugem e da competição da borracha sintética e as plantações asiáticas, livres da dominação japonesa.
Depois que Ford entregou a cidade ao governo brasileiro, em 1945, as autoridades tiveram que ir transferindo a cidade de uma agência para a outra, em grande parte por causa dos experimentos mal-sucedidos na agricultura tropical. Daí em diante, a cidade entrou em um estado permanente de declínio.
Há algo a respeito dessa utopia fracassada que toca acadêmicos e artistas em outras partes do mundo. Fordlândia inspirou o álbum de 2008 do compositor islandês Johann Johannsson e um romance de 1997 de Eduardo Sguiglia sobre um aventureiro argentino que chega ali para recrutar os empregados das plantações.
Alguns descendentes dos trabalhadores que se estabeleceram em Fordlândia, bem como novos migrantes de outras partes do país, têm pequenos lotes que servem de pasto para o gado zebu; outros plantam mandioca nas áreas onde havia seringueiras, décadas atrás.
E há também moradores como Eduardo Silva dos Santos, nascido há 66 anos no hospital de Kahn, o arquiteto que projetou quase toda a Detroit do século XX, e que vive em uma casinha perto das ruínas da maternidade.
Dos Santos dá detalhes contraditórios sobre a Fordlândia dirigida pelos norte-americanos, tendo crescido nos anos depois que Ford já tinha entregado a cidade.
“Quando ele ainda estava por aqui este lugar era limpo, não tinha bicho, inseto, mato na cidade”, relembra ele, que é um dos onze filhos nascidos em uma família que dependia da seringueira. “Meu pai trabalhava para ele e fazia o que mandavam fazer. Empregado é que nem cachorro: obedece.”
Ordem na selva
Porém, para espanto de Ford, nem sempre seguiam à risca suas ordens. Os gerentes tentaram impor a proibição às bebidas alcoólicas, mas os homens simplesmente subiam nos barcos e se dirigiam para uma “ilha de inocência” perto dos bares e bordéis. E, em 1930, os que não aguentavam a dieta imposta pelo patrão, que consistia em aveia, pêssegos em lata e arroz integral, fizeram uma verdadeira revolução.
Destruíram os relógios de ponto, cortaram os pontos de eletricidade das plantações e cantavam: “O Brasil é para os brasileiros; matem os americanos”, forçando inclusive alguns gerentes a se esconder na floresta.
A Amazônia impôs seus próprios desafios aos norte-americanos. Alguns não conseguiram se adaptar às condições e acabaram sofrendo um colapso nervoso; um se afogou no rio Tapajós quando uma tempestade virou seu barco. Outro foi embora depois que três filhos seus morreram de doenças tropicais.
Ford poderia ter evitado tragédias como essa, bem como a gestão péssima da plantação, se tivesse buscado conselho de especialistas que cuidavam das seringueiras ou estudiosos da capacidade local de comportar aventuras grandiosas como a sua, mas parecia não se importar com as lições aprendidas com o passado.
“Essa coisa de história é bobagem. Que diferença faz quantas vezes os gregos colocaram uma pipa no ar ou não?”, disse Ford ao New York Times, em 1921.