Apesar de fazer parte do discurso político dos presidentes Jair Bolsonaro, no Brasil, e Donald Trump, nos EUA, a possibilidade de flexibilização da quarentena instituída para combater o novo coronavírus, em prol da economia, não é argumento preponderante nas discussões feitas por economistas.
A maioria dos especialistas brasileiros e norte-americanos não tratam a suspensão do isolamento, agora, como uma possibilidade. Alguns são mais radicais, e chamam de "besteira" a sugestão de que haveria um trade-off – isto é, a escolha de uma opção em detrimento de outra – entre o isolamento e a prosperidade econômica. Por outro lado, a Gazeta do Povo não localizou estudos que defendam, com metodologia científica reconhecida, a antecipação do fim da quarentena.
Nos EUA, a Universidade de Chicago – instituição de formação do ministro da Economia brasileiro, Paulo Guedes – fez uma pesquisa entre economistas para entender qual é a visão desses especialistas a respeito das interações entre medidas de contenção da epidemia e a crise econômica advinda do novo coronavírus. Ao todo, 41 dos 44 participantes do Initiative on Global Markets, ligado à universidade, responderam às questões.
Em uma das perguntas, os economistas tinham que se posicionar em relação à seguinte afirmação: "Abandonar medidas de lockdown quando a possibilidade de contaminação pelo coronavírus continua alta deve levar a um dano econômico maior do que manter as medidas de isolamento para eliminar a possibilidade de novo aumento no número de casos". Entre os entrevistados, 41% disseram concordar fortemente com essa afirmação. Outros 39% afirmaram concordar. Nenhum discordou.
Uma parte dos especialistas (14%), no entanto, se mostrou indecisa quanto à afirmação. Pinelopi Goldberg, economista da Universidade de Yale, por exemplo, disse que é preciso saber qual é o real número de pessoas infectadas – incluindo as que não apresentam sintomas – antes de implementar restrições severas de locomoção. "Se todo mundo já estiver infectado, lockdowns não vão fazer diferença", comentou a professora.
José Scheinkman, brasileiro que leciona na Universidade de Columbia, por sua vez, diz que, sem uma vacina, o ressurgimento dos casos será alto até que uma grande parte da população já esteja infectada. "A estratégia ótima envolve múltiplas ondas de redução do contato social", disse o economista.
Em outra questão da pesquisa, 52% economistas disseram concordar fortemente com a ideia de que uma "resposta adequada ao coronavírus vai envolver tolerar uma contração econômica até que a disseminação do vírus caia significativamente". Outros 36% concordaram com a afirmação. Mais uma vez, não houve quem dissesse discordar.
Estudo projeta perdas na economia com e sem quarentena nos EUA
No caso norte-americano, um estudo feito por economistas da Universidade de Wyoming argumenta, por meio de uma análise estatística de custo-benefício, que "os benefícios econômicos de salvar vidas [por meio do isolamento social] são substancialmente maiores do que as perdas que serão registradas em termos de PIB".
Os cálculos do estudo apontam que, no caso norte-americano, se o contato social for diminuído em 38%, o pico da curva de infecção (ou seja, a maior quantidade de pessoas infectadas simultaneamente) pode ser diminuído pela metade. "Isso evitaria que o sistema de saúde ficasse sobrecarregado e, assim, manteria a taxa de mortalidade média no menor nível possível, de 0,5%", diz o texto.
Nesse cenário, o cálculo dos pesquisadores demonstra que no longo prazo a economia dos EUA ganharia US$ 5,35 trilhões, mesmo que, a princípio, haja maiores perdas no PIB (US$ 26,2 trilhões de queda com isolamento social e US$ 19,4 trilhões sem o isolamento). A recuperação seria lenta (em 60 meses), mas o modelo mostra que não há ganhos semelhantes no cenário sem isolamento social.
O resultado não se confirma, somente, caso a recuperação econômica sem o isolamento social ocorra de forma rápida (curva em "V") – o que parece improvável, segundo os pesquisadores.
Dilema entre vidas e economia é "uma besteira", diz especialista de Chicago
Neale Mahoney, professor de Economia na Universidade de Chicago, explica em um artigo por que, na prática, os governantes não precisam escolher entre a saúde pública e o bem-estar econômico. Para ele, a ideia de que "o remédio não pode ser mais custoso que a própria doença" é, na verdade, "uma besteira".
"Priorizar a batalha médica contra a Covid-19 ajuda a economia de duas formas. Quando gastamos mais em equipamentos de proteção (máscaras, luvas, etc.), ventiladores (...) e infraestrutura de saúde, combatemos o vírus e, ao mesmo tempo, injetamos dinheiro na economia", explica Mahoney. "Quando o governo instrui os cidadãos a ficar em casa, há dano econômico no curto prazo, mas abre-se a possibilidade de que haja uma transição menos agressiva no médio prazo, o que também é bom para a economia", completa.
Não é só "achatar a curva": pesquisador defende investimentos em saúde para encurtar isolamento
Em outro artigo, Aaron Edlin, professor de Economia e Direito na Universidade de Berkeley, na Califórnia, sugere que apenas "achatar a curva" de contágio, por meio do isolamento, não é suficiente. Ao mesmo tempo, defende Edlin, o governo deve investir para aumentar a capacidade do sistema de saúde em atender os doentes.
"Agir é necessário. O pacote de estímulos precisa incluir bilhões de dólares para a compra de máscaras, ventiladores e para o preparo de leitos e hospitais, além do que for necessário para tratar as pessoas em casa e evitar a disseminação do vírus", diz o professor.
De acordo com o texto, o papel de melhorar a infraestrutura de saúde é do governo, já que não há tempo para esperar que os mercados ofereçam a estrutura necessária.
"A melhor forma de estimular a economia é deixar todos nós mais seguros, aumentando a capacidade do sistema de saúde e evitando que tenhamos que ficar muito mais tempo em casa", conclui Edlin.
Números do coronavírus são relativamente pequenos por causa da quarentena, afirma professor
No Brasil, boa parte dos economistas também aponta que uma flexibilização precoce da quarentena deve trazer danos maiores do que os de curto prazo, provocados pela paralisia momentânea da economia. Isso porque, para eles, não é possível simplesmente "voltar à normalidade" enquanto a disseminação do vírus não for contida.
"Algumas pessoas que criticam o isolamento usam como argumento que o número de pessoas afetadas pela doença é muito pequeno diante do total da população. Mas isso é verdade, precisamente, por causa do isolamento. Se a quarentena for flexibilizada, ainda que seja só um pouco, a tendência é de que a velocidade de contágio cresça e os números absolutos de pessoas infectadas sejam muito grandes", diz Andrés Ferrari, professor de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Outro ponto levantado pelo professor é de que, mesmo que a mortalidade seja relativamente baixa, isso não impede que as pessoas infectadas tenham sintomas graves, que impossibilitem o retorno ao trabalho e sobrecarreguem o sistema de saúde. Os impactos sociais e psicológicos da epidemia também podem levar a situações que não são "previsíveis ou controláveis", na opinião do professor.
"Muitas pessoas podem pegar a doença e não morrer, mas ficarão sem ter como trabalhar durante algum tempo, precisando descansar. Além disso, uma pessoa que passa mal pode precisar da assistência de outra, o que diminui ainda mais o número de trabalhadores aptos a seguir a vida normalmente", completa.
Para a OCDE, quarentena evita "declínio financeiro" e da sociedade
Reconhecer a necessidade da quarentena, entretanto, não significa desconsiderar ou minimizar os efeitos que a paralisia da economia gera no curto prazo. "Ninguém é insensível ou não está consciente do drama das pessoas que não conseguem garantir seu sustento. Isso é real, e tem levado as pessoas a exigirem um retorno à normalidade o quanto antes. O problema é que é impossível voltar à normalidade antes que as questões de saúde sejam resolvidas", concorda André Cunha, também professor de Economia da UFRGS.
Até mesmo organizações internacionais apontam para a necessidade da manutenção da quarentena. Após uma reunião do G20, o secretário-geral da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Angel Gurría, afirmou que "os altos custos das medidas de saúde pública são necessários para evitar consequências muito mais trágicas e impactos ainda piores em nossas economias no futuro".
"Milhões de mortes e o colapso de sistemas de saúde vão nos fazer declinar financeiramente e como sociedade, então desacelerar a epidemia e salvar vidas deve ser a prioridade dos governos", completou.
A OCDE é formada principalmente por nações desenvolvidas e busca disseminar o que acredita serem boas práticas para o desenvolvimento. Na gestão de Bolsonaro, o governo brasileiro buscou e conseguiu o apoio dos EUA para ingressar na organização, mas o país ainda precisa cumprir requisitos para ser aceito no "clube".
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