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Além das dificuldades tradicionais para colocar em pé uma grande privatização, o governo enfrentará um desafio adicional no caso dos Correios: a isenção de impostos. A estatal não precisa recolher nenhum imposto relacionado à prestação de seus serviços, inclusive serviços que não fazem parte de sua atividade-fim, que é a entrega de cartas. Essa imunidade tributária é uma das principais bases de sustentação econômico-financeira dos Correios e há dúvidas se empresas privadas conseguiriam assumir as funções da estatal sem esse benefício.
Os Correios não pagam impostos por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição prevê a chamada “imunidade tributária recíproca”, que proíbe que União, estados e municípios cobrem tributos uns dos outros. A estatal pleiteou na Justiça a extensão dessa imunidade e, depois de muitas idas e vindas, saiu vitoriosa. Com isso, os Correios não pagam impostos como ISS, IPVA, IPTU e Imposto de Renda (IR) e têm de recolher apenas algumas contribuições, como para aposentadoria.
A decisão de estender o benefício da “imunidade tributária recíproca” se deu porque os ministros entenderam que a estatal presta serviço público de finalidade da União sem finalidade lucrativa. Ou seja, mesmo que a empresa tenha lucro, como ocorre em vários anos, sua finalidade não é lucrar. O serviço postal e o correio aéreo nacional são seus principais objetivos, ambos de interesse público, conforme prevê a Constituição.
Chegou-se a discutir no Supremo se a imunidade valeria apenas para o serviço-fim da estatal (postal e correio aéreo nacional), mas em 2013 a Corte decidiu por maioria que a imunidade valeria para qualquer atividade, incluindo banco postal, entrega de encomendas, cobrança e recebimento de títulos e outras. Foram seis votos a cinco.
A maioria dos ministros argumentou que as atividades paralelas dos Correios acabam subsidiando a atividade-fim, que é deficitária, numa espécie de subsídio cruzado. Por isso, essas atividades secundárias também não teriam como objetivo principal o lucro, e sim subsidiar o serviço de cartas. Desde então, o tema está pacificado e União, estados e municípios não podem cobrar impostos dos Correios.
O que acontece com os impostos em caso de privatização dos Correios?
O desafio do governo será equacionar essa questão na privatização. Advogados tributaristas consultados pela Gazeta do Povo explicam que, em caso de venda da estatal, ela perde automaticamente essa imunidade tributária e o novo dono teria de arcar com os custos tributários que hoje não pesam sobre a operação.
"A partir do momento que privatizar os Correios, vai perder a imunidade tributária, porque a imunidade tributária é dada aos Correios por ser empresa pública que prestava um serviço essencial previsto na Constituição Federal", explica André Felix Ricotta de Oliveira, especialista em Direito e processo tributário e coordenador do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet). "A imunidade tributária não se estende às empresas privadas”, reitera.
A questão é que o não recolhimento de impostos é uma das bases para prestação de serviço no Brasil inteiro sem precisar recorrer a subvenções da União. A empresa economiza R$ 1,6 bilhão por ano com o benefício, segundo o Ministério da Economia. A Associação dos Profissionais dos Correios (ADCAP) não vê possibilidade de se manter a universalização do serviço sem essa imunidade. Diz, ainda, que o fim do benefício tributário acarretará em aumento do preço do serviço.
O que fazer, então?
Uma fonte do governo que acompanha o processo de privatização da estatal reconheceu à Gazeta do Povo que os Correios só não são dependentes de recursos da União porque contam com essa imunidade tributária. E que, provavelmente, o projeto de lei que permitirá a privatização da estatal deixará a porta aberta para algum tipo de benefício tributário aos novos donos.
Os estudos que estão sendo feitos pelo consórcio contratado pelo BNDES vão indicar exatamente o grau de benefício tributário que precisará ou não ser mantido.
Michel Siqueira Batista, advogado tributarista do escritório Vieira Rezende Advogados, reforça que a imunidade tributária não valerá mais em caso de privatização. Ele explica que a única solução para manter algum nível de imunidade seria optar pela concessão dos serviços. Ainda assim, o benefício só caberia aos serviços que guardam natureza pública e não visam ao lucro. E de todo modo poderia ser contestado juridicamente, pois o negócio perderia o argumento do subsídio cruzado, fundamental para a vitória da estatal no STF em 2013.
“Nesse caso [concessão], deverá haver cuidado com as atividades transferidas e os bens explorados, pois pode-se perder o argumento do subsídio cruzado, que hoje se sustenta tendo em vista a concentração de todas as atividades dentro de uma mesma pessoa jurídica, os Correios”, afirma Batista.
“A concessão potencialmente serviria para afastar a incidência do IPTU sobre imóveis cedidos para atividades eminentemente relacionadas aos serviços públicos. Por outro lado, outros impostos continuariam em tese aplicáveis, como o ISS [sobre os serviços prestados, inclusive os deficitários], IPVA sobre a frota de veículos e o Imposto de Renda”, completa.
Caso o governo resolva não vender a estatal e opte por uma abertura de capital, a imunidade tributária também seria perdida, avalia. “Em caso de venda ou abertura de capital, perderia imunidade. Inclusive, no caso de IPO [oferta pública inicial de ações], há precedente recente da Sabesp. O STF entendeu que, apesar de ser serviço público de água e esgoto, a Sabesp não faria jus à imunidade porque o próprio IPO visa o fim lucrativo. Se entendeu que o interesse público foi superado pelo interesse privado de gerar lucro”, lembra Bastista.
A única forma de o governo manter algum benefício tributário ao novo dono dos Correios seria via outro mecanismo: a isenção tributária. Mas, nesse caso, o governo só poderia dar isenção para impostos federais, que são de competência da União. E precisaria da aprovação do Congresso.
“A União só pode isentar de Imposto de Renda e IOF, e para isso precisa prever a isenção no projeto de lei da privatização ou em outro projeto. Ela não pode dar isenção para IPVA e ISS, que são impostos de competência estadual e municipal. Essa decisão caberia a cada estado e município”, explica o tributarista André Felix Ricotta de Oliveira.