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Pressionado pela disparada do dólar, que na semana passada alcançou a maior cotação em mais de quatro anos, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) promete para esta semana um pacote de corte de gastos para aliviar o desequilíbrio fiscal e acalmar o mercado financeiro.
Lula está numa encruzilhada entre atender a demanda pela responsabilidade com as contas públicas e desagradar setores aliados da sua base com medidas de ajuste.
A contenção de despesas é necessária para o cumprimento da meta de zerar o déficit da União em 2025, conforme determinado pelo arcabouço fiscal.
Essa tarefa mexe com um leque amplo de interesses que envolvem desde distribuição de emendas aos parlamentares, repasses aos ministérios e manutenção de benefícios e programas sociais.
Todos os movimentos têm potencial de arranhar a popularidade e comprometer a reeleição do mandatário.
Atraso em pacote piorou humor do mercado
O pacote era esperado para depois das eleições municipais, mas a sinalização de falta de prioridade do ministro Fernando Haddad, na semana passada, mexeu com os ânimos dos investidores.
O presidente sentiu a reação do mercado e determinou o cancelamento da viagem que Haddad faria à Europa para apressar o anúncio das medidas.
Uma rodada de discussões ocorreu já na tarde desta segunda-feira (4) entre Lula e Haddad, com a presença de ministros da área econômica.
Após a reunião, a assessoria do Ministério da Fazenda divulgou nota afirmando que o “quadro fiscal do Brasil foi apresentado e compreendido”. Mais cedo, Haddad havia declarado que os ajustes estão na “reta final”.
Sob expectativa das medidas, o mercado se acalmou e a moeda americana recuou, fechando o dia cotada a R$ 5,78.
Outros encontros de Lula com ministros foram marcados para esta terça-feira (5). Embora Haddad tenha sinalizado que o anúncio deve ocorrer nesta semana, o governo ainda não definiu a data.
Lula terá de entregar algum corte de gastos
Analistas ouvidos pela Gazeta do Povo avaliam que Lula sabe que terá de entregar “alguma coisa” em relação às despesas, embora estivesse apostando em “tourear” o mercado.
“Se não tivesse acontecido essa ‘hecatombe’ no final da última semana, com essa pressão no câmbio, o governo não se mexeria”, afirma Juliana Inhasz, economista do Insper.
Para ela, o governo teme o desgaste com os setores que vão perder com as medidas, mas não tem opção. “Não fazer o ajuste, para Lula, significa um tiro no pé”, diz.
A expectativa do mercado financeiro passa agora a se concentrar no valor dos cortes e nas áreas afetadas dentro das despesas obrigatórias, que consomem mais de 90% do orçamento e estrangulam o espaço para investimentos e custeio da máquina pública.
Cálculos do governo demonstram que, se nada for feito, o espaço para despesas não obrigatórias – que tem previsão de R$ 104,9 bilhões em 2026 – diminuirá até chegar a apenas R$ 11,8 bilhões em 2028, o que significaria a paralisia no governo federal, além do impacto na dívida pública.
Incrementada pelo ciclo de alta de juros, a dívida bruta do setor público deve atingir 84,3% do PIB em 2026 e 90% em 2032, segundo a mediana das projeções coletadas pelo boletim Focus, do Banco Central.
“A gente espera que este pacote traga uma coisa efetivamente estrutural, que realmente mexa com a questão dos gastos”, diz Rodrigo Moliterno, Head de Renda Variável da Veedha Investimentos. “Não pode ser algo paliativo e deve ser algo entre R$ 30 bilhões e R$ 50 bilhões. Abaixo disso, o mercado pode voltar a ‘ficar azedo’.”
Para Sílvio Campos Neto, economista da consultoria Tendências, mais importante que o valor do corte é a “sustentabilidade” do ajuste. “Será preciso transmitir uma mensagem de que a questão fiscal foi minimamente equacionada”, diz.
Problemas estruturais não serão resolvidos
Alguns dos problemas estruturais, no entanto, já se sabe que não serão atacados. O governo avisou que não vai mexer na política de valorização do salário mínimo, com reajustes acima da inflação, retomada com a posse de Lula em 2023. A prática provoca forte aumento nas despesas vinculadas ao salário mínimo, como aposentadorias, pensões, abono salarial, seguro-desemprego e Benefício de Prestação Continuada (BPC).
A falta de reajuste real ao salário mínimo afetaria trabalhadores, e por isso sempre foi vetada por Lula. A Previdência, fonte de maior déficit das contas da União, também deve ficar de fora, ao que tudo indica.
Não se fala ainda em desvincular os pisos constitucionais de saúde e educação. Com o fim do teto de gastos, essas despesas – que vinham sendo corrigidas pela inflação – voltaram a ser vinculadas a porcentuais da receita.
Com a retomada da vinculação, o governo Lula contratou para si próprio uma armadilha, uma vez que tais gastos acabam crescendo acima dos limites globais de gastos previstos pelo arcabouço fiscal – segundo o qual a despesa total não pode subir mais de 2,5% em termos reais.
Pela Constituição, a educação deve receber 18% da receita líquida de impostos (RLI) e a saúde, 15% da receita corrente líquida (RCL).
Propostas de corte de gastos atingem benefícios
Estão na mesa de negociação para o aval de Lula a limitação de gastos com o Benefício de Prestação Continuada (BPC), o seguro-desemprego e o abono salarial.
Essas duas últimas atingem diretamente o bolso do trabalhador celetista, fatia importante da base eleitoral do presidente. Mas são políticas consideradas caras e pouco eficientes.
Segundo dados do Tesouro Nacional, o BPC – destinado a idosos e pessoas com deficiência que não contribuíram o suficiente com a Previdência – consumiu quase R$ 73 bilhões de janeiro a agosto e R$ 106 bilhões no acumulado de 12 meses.
O abono salarial, pago uma vez por ano a trabalhadores com carteira assinada que recebem até dois salários mínimos, também enfrenta problemas. “É uma questão de desenho do programa”, diz João Pedro Paes Leme, analista da Tendências. “Ele acaba sendo muito caro para aquilo que ele entrega.”
O seguro-desemprego, por sua vez, tem apresentado uma distorção curiosa. Os gastos com o benefício aumentaram 20% entre janeiro de 2022 e agosto de 2024, passando de R$ 43,6 bilhões para R$ 52,5 bilhões, corrigidos pelo IPCA. O movimento chama atenção porque o desemprego diminuiu de 13,1% para 6,6% nesse mesmo intervalo.
Uma das possibilidades que a equipe econômica estuda é que essas despesas obrigatórias estejam sujeitas também à regra do marco fiscal, que limita a expansão dos gastos a uma alta de 2,5% acima da inflação.
Caso ocorra uma alta acima deste patamar, uma alternativa seria acionar gatilhos para travar a despesa obrigatória.
Clemente Ganz Lúcio, coordenador do Fórum das Centrais Sindicais, afirmou à Gazeta do Povo que não houve consultas ao movimento por parte dos ministérios da Fazenda e do Trabalho.
Segundo ele, qualquer proposta associada à restrição da proteção ao trabalho será contestada. “Nossa demanda é por ampliar essa proteção especialmente para aqueles trabalhadores que não contam com nenhum direito, que é quase metade da força de trabalho”, diz.
O abono salarial, lembra Ganz Lúcio, é constitucional e o seguro-desemprego chega a ser pago por 12 meses em alguns países. “Nós temos discutido um ajuste orçamentário a ser feito que não para em pé”, afirma. “Não podemos cortar gastos sociais enquanto nós estamos gastando dez vezes mais com os juros da dívida pública, que ninguém explica porque são tão altos.”
Governo deve apresentar duas PECs para o corte de gastos
As medidas do governo devem ser consolidadas em duas propostas de emenda à Constituição (PECs), já que diversas políticas públicas são determinadas pela Carta Magna, como o abono salarial, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), além de vinculações de gastos.
No caso do Fundeb, a equipe econômica avalia que o aumento de R$ 21 bilhões de 2021 para R$ 43 bilhões em 2024 no orçamento não se refletiu nos indicadores de qualidade do ensino básico. A proposta é aumentar a parcela do Fundeb que é contabilizada dentro dos gastos mínimos de educação.
Uma PEC precisa ser aprovada por ao menos 308 dos 513 deputados e 49 dos 81 senadores. “É uma forma que também ajuda o governo a dividir com o Legislativo o ônus do ajuste”, diz Alex Agostini, economista-chefe da Austin Ratings.
Para os analistas, nada indica que a tramitação será fácil, considerando o conflito do relacionamento entre os dois Poderes por conta da questão das emendas parlamentares.
Também consideram que o Congresso está no meio da votação da Reforma Tributária, o que deve postergar o avanço das medidas.
“Seria muito ingênuo achar que mudanças significativas possam ser feitas de uma hora pra outra, até pela dificuldade de aprovar politicamente”, lembra Paes Leme. "Sobretudo porque responsabilidade fiscal no Brasil não é uma pauta defendida seriamente nem pela esquerda nem pela direita."
Para Sílvio Campos Neto, as medidas parecem ir na direção correta, mas ainda não o suficiente pra indicar uma reversão da dinâmica insustentável de despesas. “O governo parece trabalhar com uma correção de rotas suficiente para levar a situação até 2026”, diz. “Provavelmente é um tema fiscal ainda vai precisar ser visitado algumas outras vezes mais adiante”.