Desde que o novo coronavírus começou a se disseminar no Brasil, alguns empresários e o próprio presidente Jair Bolsonaro vêm repetindo que o combate à doença não pode implicar em um "mal maior" e mais duradouro: a desaceleração econômica. Mesmo que a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) seja para o distanciamento social, o argumento é de que nem todos precisam ficar isolados, o que evitaria uma forte desaceleração da atividade econômica.
Esse discurso – que ignora os casos de Covid-19 que se proliferam entre jovens saudáveis – criou uma dicotomia entre cumprir as recomendações da OMS e salvar vidas, de um lado; e evitar um colapso econômico, de outro. Mas, de acordo com especialistas, trata-se de um falso dilema. Isso porque saúde pública e prosperidade econômica andam juntas – ou seja, desrespeitar o isolamento, agora, deve causar perdas financeiras ainda maiores no futuro.
"Na medida em que a gente não cuida da saúde da população, corremos o risco de pagar os custos de curto prazo duas vezes, já que teríamos que retornar ao isolamento em pouco tempo; e de ter pessoas que são saudáveis, empregadas e produtivas morrendo, o que provoca uma perda de capacidade produtiva", aponta Carlos Góes, economista e pesquisador-chefe do Instituto Mercado Popular.
Quanto, afinal, "custa" uma vida?
Góes fez uma conta para tentar chegar ao que seria o "valor econômico" de uma vida – e demonstrar, com números, como a recusa em implementar a quarentena pode custar mais caro do que a paralisia momentânea da economia.
O cálculo apresentado por ele mostra que cada morte pode implicar em uma perda de, em média, R$ 630 mil para o país no longo prazo.
"Se multiplicarmos esse valor pelo número de mortes estimado pelo Ministério da Saúde no pior cenário da epidemia, ou seja, sem qualquer medida de isolamento social [1,2 milhão de vítimas], chegaríamos a algo em torno de R$ 800 bilhões em perdas", diz.
Como o economista chegou a esse valor?
Os dados apresentados por Góes têm origem em um estudo publicado pelo governo brasileiro ainda na gestão do ex-presidente Michel Temer. O trabalho foi feito por ele em parceria com os colegas Hussein Kalout, Marcos Degaut, Fabiano de Andrade Lima e Coronel Paulo Laux.
No relatório, os pesquisadores buscaram mensurar quanto a criminalidade custa ao país – além, é claro, do aspecto humano. Entre os fatores considerados – que incluem custos de encarceramento e com forças de segurança pública, por exemplo – está, justamente, a perda da capacidade produtiva provocada pela morte precoce de cidadãos. Quanto mais cedo morre uma pessoa, aponta o documento, mais renda e geração de riqueza perde o país.
"É impossível medir o valor efetivo da perda de uma vida. Esse cálculo teria implicações morais que são intangíveis e de impossível valoração. Existe, contudo, um aspecto específico dos homicídios que é de factível contabilidade econômica, qual seja: a perda de capacidade produtiva decorrente da redução da força de trabalho", reforça um trecho do relatório.
As estimativas do estudo mostram que o país perdeu R$ 26 bilhões em capacidade produtiva por conta dos homicídios só em 2015. Os valores foram calculados em 2017.
"Em uma crise sanitária como essa, a lógica é praticamente a mesma. Obviamente, precisamos ajustar isso pelo perfil etário das pessoas que serão atingidas. Na aproximação que eu fiz, usei como base o valor médio inferior estimado nesse estudo – que já é conservador, ou seja, provavelmente está subestimado", explica Góes.
Ele ressalta, porém, que o cálculo não é preciso, levando em consideração, principalmente, que a perda de uma vida implica em muitos fatores intangíveis, que não podem ser mensurados por números.
"A perda humana, é claro, é maior do que a econômica. O que eu fiz foi uma ilustração para mostrar que também vai existir uma perda financeira muito grande se a gente não fizer nada e deixar o vírus solto por aí. Não existe uma oposição entre os objetivos de mais longo prazo da economia e da saúde pública", ressalta.
Qual é o papel do governo para salvar vidas e a economia?
Se o isolamento não pode ser deixado de lado mas, ao mesmo tempo, é preciso evitar consequências mais graves na economia, como o governo deve atuar? Góes, assim como a maior parte dos economistas do país, defende que a União intervenha, para evitar que haja uma "perda permanente na capacidade de geração de riqueza".
Segundo ele, do lado da oferta – ou seja, das empresas –, o papel do governo é garantir crédito e liquidez para negócios saudáveis, que podem ir à falência por conta da crise. Já do lado da demanda, a ação principal é a garantia da manutenção de ao menos parte da renda dos trabalhadores.
Em um orçamento público apertado, como é o brasileiro, a solução para conseguir implementar essas medidas é o endividamento.
"O papel da dívida pública é esse: tentar suavizar o ciclo econômico ao longo do tempo. No futuro, é provável que a gente precise fazer um esforço maior para compensar esse gasto de agora. Mas, nesse momento, a gente precisa emitir esses gastos para atingir os objetivos de politica pública, e não ter uma perda mais prolongada de capacidade de geração de riqueza", afirma o economista.
Nas últimas semanas, o governo de Jair Bolsonaro vem anunciando medidas nesse sentido, ainda que elas estejam demorando a se concretizar. Estão incluídos, por exemplo, o financiamento à folha de pagamento de pequenas e médias empresas; o pagamento de um auxílio a trabalhadores informais; medidas do Banco Central para expandir a oferta de crédito; e a flexibilização de regras trabalhistas para evitar demissões.
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