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O momento não é dos mais favoráveis para empresas e famílias pegarem dinheiro emprestado. Os juros estão elevados, a inadimplência aumentou e a economia está em desaceleração. Para complicar o cenário, veio a crise das Lojas Americanas.
Embora seja descrito por alguns bancos como um "caso isolado", uma "fraude" que está longe de ser a regra no varejo, o episódio acendeu um sinal de alerta sobre empresas desse e de outros setores. Cresceu a percepção de risco sobre as finanças corporativas – e essa percepção é componente dos mais relevantes para determinar o custo do crédito e a decisão de conceder ou não um empréstimo.
Em 11 de janeiro, a Americanas informou ter detectado "inconsistências" contábeis de R$ 20 bilhões. A empresa, que pediu recuperação judicial oito dias depois, tem dívidas de quase R$ 48 bilhões, segundo os administradores judiciais.
“A crise na Americanas colocou mais gasolina no mercado de crédito e acentuou as incertezas”, diz o analista Fabiano Vaz, da Nord Research. "Está fazendo diminuir o crédito para as empresas. O risco para os bancos aumentou".
As empresas também vêm sentindo dificuldades na emissão de crédito privado, depois de um ano recorde para as emissões de renda fixa.
Antônio Sanches, da Rico Investimentos, vê o caso Americanas como isolado e avalia que não há problemas estruturais com as emissões de crédito privado. Mas diz que o episódio acabou contagiando o ambiente: “O impacto das Americanas não aconteceu só na empresa, criou um cenário de aversão ao risco”.
Não é só a Americanas que está com problemas. Pelo menos outras três empresas – Oi, Light e Marisa – anunciaram que buscariam reestruturar a dívida para evitar a recuperação judicial.
Para José Eduardo Daronco, analista da Suno Research, há pontos em comum entre Americanas, Light e Marisa: “Entraram em um cenário de aperto monetário com uma alavancagem financeira desequilibrada”.
Em um ano e meio, o Banco Central elevou a taxa básica de juros de 2% para 13,75% ao ano, para combater a alta da inflação – e o mercado acredita que ela deve continuar nesse patamar ao menos durante o primeiro semestre. Daronco aponta que esse cenário pegou de surpresa muitas empresas.
“Além de estarem mais alavancadas, a Marisa e a Americanas atuam em um setor altamente competitivo, em que precisam financiar o cliente para finalizar a compra. Com o juro alto, o crédito fica mais caro, dificultando que as varejistas consigam financiar os clientes. E o resultado disso são menos vendas, que agravam ainda mais a situação já delicada”, diz o analista.
Inadimplência de empresas cresce há sete meses
A revelação de dificuldades financeiras em grandes empresas ocorre em momento delicado. A inadimplência das empresas, incluindo recursos livres e direcionados, cresceu em janeiro pelo sétimo mês seguido, atingindo 1,63% da carteira, segundo o BC.
Dados da Serasa Experian mostram que em novembro havia 6,4 milhões de empresas inadimplentes, 8,2% a mais do que no fim do ano anterior. As dívidas negativadas chegam a R$ 108,9 bilhões, com cada CNPJ devendo R$ 17 mil, em média. A maior parte das pendências são não financeiras.
Ao mesmo tempo que a inadimplência cresce, o apetite por crédito pelas empresas vem diminuindo, aponta a Serasa Experian. Nos 12 meses encerrados em novembro, registrava uma expansão de 3,1% em relação ao período anterior. É a menor taxa desde abril de 2021. Médias e grandes vêm puxando a desaceleração.
Por outro lado, linhas de crédito mais emergenciais, como antecipação de duplicatas, recebíveis e faturas de cartão, têm sido mais usadas por empresas. As concessões atingiram R$ 1,08 bilhões nos 12 meses encerrados em janeiro, 13,2% a mais do que no período anterior.
O prazo médio de concessão desses empréstimos está menor. Entre janeiro de 2022 e janeiro de 2023, ele caiu de 2,6 para 2,3 meses. A antecipação de faturas de cartão de crédito permaneceu estável em 2,4 meses.
Número de brasileiros inadimplentes é recorde
A inadimplência também está em alta entre as famílias. Segundo a Serasa Experian, já são 70,1 milhões de pessoas físicas com algum tipo de restrição ao crédito. Em termos absolutos, um recorde. O número equivale a 43% da população adulta. São R$ 323,3 bilhões em dívidas não quitadas, o que corresponde ao PIB de um estado como Santa Catarina ou um país como a Sérvia (Europa Oriental).
“Uma das principais responsáveis por isso é a inflação, que vem causando um estrago no poder de compra e no bolso dos consumidores”, diz o economista-chefe da Serasa, Luiz Rabi.
O endividamento médio de cada inadimplente é de R$ 4.621,30, 27% mais que há cinco anos. Ficou mais difícil sair da inadimplência, uma vez que o salário não acompanhou essa expansão, destaca o economista.
Chama atenção o aumento da participação de pessoas com mais de 60 anos no quadro de inadimplentes. Segundo a Serasa Experian, 9,2 milhões de brasileiros dessa faixa etária estavam com dívidas em atraso em janeiro de 2019, o equivalente a 14,7% do total de inadimplentes da época (62,2 milhões). Hoje há 12,5 milhões de pessoas com 60 anos ou mais inadimplentes, ou 17,8% do total.
A expansão se deve, entre outros fatores, ao empréstimo do nome, uma prática que, segundo a Serasa Experian, foi comum na pandemia. É quando uma pessoa usa o nome de outra para pegar crédito, algo que ocorre com o consignado do INSS, por exemplo.
Nesta segunda-feira (27), o BC informou que a inadimplência já corresponde a 6,11% da carteira total de crédito das pessoas físicas, o maior porcentual desde outubro de 2016. E o endividamento das famílias com o sistema financeiro nacional corresponde a quase metade da renda acumulada nos últimos 12 meses.
A forte alta nos juros, derivada da escalada da Selic, também explica o aumento na inadimplência. Segundo o BC, a taxa média de juros das operações de crédito com recursos livres – aqueles que as instituições financeiras podem alocar livremente – chegou a 43,49% ao ano em janeiro, maior nível desde outubro de 2017.
A situação seria pior se não fosse a relativa desconcentração que o mercado de crédito experimentou nos últimos anos, avalia o economista da Serasa. “Fintechs, bancos digitais e cooperativas de crédito ampliaram a concorrência. Isto ampliou a disposição dos bancos para a renegociação”, diz Rabi.
Situação é mais grave entre famílias com renda de até três salários mínimos
Pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), divulgada no início de fevereiro, mostra que quatro em cada dez famílias com renda de até três salários mínimos atrasaram pagamentos em janeiro.
Do total das famílias brasileiras, 11,6% chegaram no primeiro mês do ano sem condição de pagar dívidas atrasadas de meses anteriores. O indicador aumentou em todos os grupos de renda e de forma mais expressiva entre quem ganha até três salários mínimos. A parcela de consumidores que atrasaram dívidas por mais de 90 dias chegou a 44,5% dos inadimplentes, a maior proporção desde abril de 2020.
Matheus Amaral, analista de bancos e seguradoras do Inter, diz que a expectativa é de que o pico da inadimplência seja atingido no segundo trimestre.
Um dos segmentos que mais ganhou participação na inadimplência entre os consumidores é justamente o financeiro. Antes da pandemia, em janeiro de 2020, 37,9% das pendências inscritas na Serasa Experian estavam lá. Três anos depois, esse percentual passou para 45,7%.
Crise da Americanas reduz lucro dos bancos
A crise das Americanas já afetou os resultados das instituições financeiras no quarto trimestre. As provisões em relação à carteira de crédito atingiram 6,3%, um número que não era atingido desde janeiro de 2021, aponta o Banco Central.
O Bradesco provisionou R$ 4,9 bilhões para cobrir 100% da sua exposição à Americanas, o que fez com que o lucro caísse no quarto trimestre de 2022 para R$ 1,595 bilhão, 75,9% a menos do que o mesmo período do ano anterior.
Quem adotou estratégia similar foi o Itaú. As provisões geraram um impacto de R$ 1,307 bilhão no custo de crédito e a instituição financeira deixou de lucrar mais R$ 719 milhões ao decidir provisionar 100% da dívida da varejista.
Estratégias diferentes foram adotadas pelo Banco do Brasil (BB) e pelo Santander. O primeiro provisionou 50% da dívida da varejista. O valor é de R$ 788 milhões. Já o Santander fez uma provisão de 30% de sua exposição e apresentou um resultado abaixo da expectativa do mercado. O lucro do quarto trimestre ficou em R$ 1,7 bilhão, 38% abaixo do esperado e uma queda de 56% no comparativo com o mesmo período de 2021.
Não são só os bancos de grande porte que estão fazendo provisões à exposição da Americanas. É uma prática usada por outras instituições e que também trouxe impacto nos resultados.
O BTG Pactual provisionou 63% da exposição de R$ 1,9 bilhão, deixando de lucrar R$ 580 milhões. A cifra no ABC Brasil foi de R$ 117 milhões, impactando o resultado em R$ 29 milhões.
A provisão no Daycoval foi de 50% dos cerca de R$ 500 milhões que tem a receber. Os resultados do BV também foram afetados, com uma queda de 33,8% no comparativo entre os quartos trimestres de 2021 e 2022. A exposição é de R$ 206 milhões.