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O Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar nesta quinta-feira (20) uma ação que questiona o uso da taxa referencial, a TR, como instrumento de correção das contas do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5.090/DF foi impetrada em 2014 pelo partido Solidariedade e está na pauta da sessão do plenário desta quinta, que começa às 14h. É a quarta vez que o julgamento é agendado, depois de ter sido cancelado em 2019, 2020 e 2021.
Hoje os valores do FGTS são corrigidos pela TR mais um rendimento de 3% ao ano. Se a Corte decidir pela troca da taxa referencial por algum índice de inflação, por exemplo, o governo pode ser obrigado a pagar centenas de bilhões de reais a cotistas do fundo, a depender da eventual "modulação" dos efeitos da decisão. O STF já declarou a TR inconstitucional como fator de correção em pelo menos três casos, todos envolvendo a atualização de dívidas.
Na ação, o Solidariedade aponta que “o cálculo da TR se desvinculou de seus objetivos iniciais (indicar a previsão do mercado financeiro para inflação no período futuro escolhido) para se ater somente à necessidade de impedir que a poupança concorra com outras aplicações financeiras”.
O partido não indica, na petição inicial, qual índice deve substituir a TR – se o IPCA (índice que baliza as metas do Banco Central), o INPC (principal referência nas discussões salariais) ou qualquer outro. Mas aponta que os crédito depositado aos trabalhadores "deve ser atualizado por índice constitucionalmente idôneo, apurado posteriormente à desvalorização verificada".
O advogado tributarista Victor Gadelha, da plataforma Easy Legal, diz que a TR não reflete mais a inflação desde 1999, quando foram implementadas mudanças em seu cálculo.
A TR acumulada em 12 meses até março de 2023, por exemplo, foi de pouco mais de 2%. No mesmo período, o IPCA acumulou 4,65% em 12 meses e o INPC, 4,36%.
Estimativa feita pela Advocacia Geral da União (AGU) em 2021 que a União precisaria depositar quase R$ 300 bilhões – mais precisamente, R$ 295,9 bilhões – nas contas do FGTS se o julgamento lhe for desfavorável.
O Instituto Fundo de Garantia do Trabalhador (IFGT), que move ações pela revisão, estima que aproximadamente, R$ 720 bilhões deixaram de ser pagos a um total de 80 milhões de trabalhadores desde 1999 até março de 2023. O cálculo considera o valor que deveria ser depositado caso fosse usado o INPC no lugar da TR.
Segundo o IFGT, pelo menos 200 mil ações na Justiça contestam a aplicação da TR. Por ordem do ministro Luís Roberto Barroso, relator da questão no STF, todas estão com tramitação suspensa até que a Corte julgue a ADI movida pelo Solidariedade.
A União manifestou-se contrária ao pedido do Solidariedade, solicitando a extinção do processo sem o seu julgamento. A Advocacia Geral da União (AGU) e a Caixa Econômica Federal, gestora do FGTS, se manifestaram pela prejudicialidade da ação. A Defensoria Pública da União (DPU) e a Procuradoria Geral da República (PGR) solicitaram a rejeição do pedido.
Uso da TR já foi declarado inconstitucional em pelo menos três casos
Há, pelo menos, outros três casos em que o uso da TR como fator de correção foi declarado inconstitucional pelo STF. É o caso de dívidas administrativas, precatórios (dívidas do governo com empresas ou pessoas, reconhecidas pela Justiça) e pendências trabalhistas.
Segundo Marcelo Bertoncini, advogado da Knopik & Bertoncini Sociedade de Advogados, o argumento da ação está relacionado ao fato de que o uso da TR fere o direito à propriedade e ao próprio FGTS, que é previsto na Constituição.
Diante disso, o Solidariedade argumenta a inconstitucionalidade do uso da TR como índice de correção monetária, “totalmente desvencilhado do real fenômeno inflacionário e não correspondente à real garantia constitucional de propriedade” e que a apropriação do gestor do FGTS – a Caixa Econômica Federal – da diferença entre a real atualização monetária e o efetivamente depositado fere o princípio constitucional da moralidade administrativa.
Quem teria direito à nova correção do FGTS? Impacto fiscal pode levar STF a modular efeitos
Os impactos fiscais de uma eventual derrota do governo podem levar a Corte Suprema a restringir os efeitos da medida. “O STF tem adotado uma postura mais preocupada com o reflexo de suas decisões nas contas públicas”, explica Jorge Boucinhas, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (Eaesp/FGV).
Embora ações desse tipo costumem ter efeitos retroativos e alcance geral, Bertoncini aponta que a decisão do FGTS pode envolver uma modulação nos efeitos. Ou seja, poderiam ser fixados marcos temporais a partir dos quais a medida valeria – como, por exemplo, a data da entrada da ação (2014) ou a data do julgamento. Neste segundo caso, o novo índice de correção valeria só de agora em diante e ninguém teria direito a depósitos retroativos.
“A grande questão é saber que critérios poderão ser usados em uma eventual modulação”, ressalta o professor. No momento, portanto, não há como saber quem será beneficiado caso o STF vote pela mudança do índice de correção.
Entre as várias possibilidades levantadas por advogados e estudiosos do tema, estão a de que só trabalhadores que tenham movido ação até 2014 tenham direito a correção; ou então todos os que moveram ação até a data do julgamento pelo STF; ou ainda os que venham a mover ações a qualquer tempo. Em um extremo, a decisão pode ser aplicável a qualquer pessoa que tivesse conta do FGTS no período discutido na ação, tenha ela entrado na Justiça ou não.
Julgamento põe baixa remuneração do FGTS em evidência
O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) aponta que a iminência do julgamento recolocou em pauta o problema da insuficiência da correção dos depósitos frente à inflação, o que resulta em perdas para os titulares das contas.
Os depósitos são remunerados mensalmente pela aplicação de duas taxas que correspondem a diferentes objetivos. Os juros referem-se à valorização do saldo pela capitalização a uma taxa anual de 3%. A atualização monetária objetiva manter o valor real do depósito.
“Por lei, deve seguir o índice adotado na caderneta de poupança. Desde 1991, este índice corresponde à Taxa Referencial (TR)”, diz nota técnica do Dieese.
Mas a TR tem sido alterada ao longo do tempo. De 1999 a 2022, o rendimento total do FGTS foi superior ao da inflação apenas em cinco anos – 1999, 2000, 2005, 2006 e 2017. Neste período, a TR acumulada foi de 44,08%, enquanto o INPC, calculado pelo IBGE e utilizado como referência nos reajustes salariais, variou 354,78%.
De setembro de 2017 a novembro de 2021, a TR foi mantida em 0%, o que limitou a remuneração das contas vinculadas ao FGTS a 3% ao ano. No mesmo período, a inflação, medida pelo IPCA, foi de 25,2%.
Uma alternativa para minimizar esse problema foi a distribuição dos resultados do FGTS aos trabalhadores. Entre 2016 e 2021, o fundo contabilizou R$ 72,4 bilhões em resultados, dos quais R$ 54,6 bilhões (75,4% do total) foram distribuídos aos cotistas.
Segundo o Dieese, a diferença entre a inflação acumulada e a rentabilidade total das contas nesse período foi de 2,76%. Mas em 2021, com a TR mantida muito próxima de zero e a alta inflação (o IPCA fechou em 10,06% e o INPC, em 10,16%), a distribuição de resultados do fundo aos trabalhadores foi insuficiente para garantir a correção monetária integral dos depósitos.
A nota técnica do Dieese aponta que a distribuição do resultado melhorou o rendimento dos cotistas do fundo, inclusive superando o desempenho da caderneta de poupança, mas não assegurou a proteção do valor real.
“Assim, permanece sem solução adequada a questão da forma de atualização monetária dos depósitos para assegurar o valor real, além da capitalização por juros previstos em lei”, informa.