Um tema recorrente neste espaço é sobre a importância da história em um jogo. Defendo que ela é quase irrelevante para a experiência, em muitas das vezes até atrapalha, como acontece com a série Halo, perfeita na jogabilidade e desprezível como ficção. Recuarei um pouco na afirmação. O enredo em si ainda me parece ter pouco valor, mas o argumento, a linha geral, pode sim diminuir o tempo entre a saída da realidade e a imersão total dos jogadores. O melhor exemplo é Child of Eden, recém-lançado para Xbox 360, provavelmente o melhor título do ano até o momento.
Primeiro vale a pena destacar a mente por trás de Child of Eden, Tetsuya Mizuguchi, um japonês de 46 anos com mais de 20 anos de trabalhos prestados à indústria. Começou a carreira fazendo jogos de corrida, um dos melhores, Sega Rally. Depois entrou para os simuladores de dança até partir para uma linha mais autoral, em 2001, quando desenvolveu um dos jogos mais insanamente sinestésico já feito, Rez, no finado Dreamcast. Um jogo de tiro de difícil classificação, que abusava de cores, vetores abstratos e trilha incidental. Rez até hoje é lembrado como uma das experiências mais ímpares que os videogames já produziram. Mizuguchi não recuou e conseguiu colocar também os jogos de quebra-cabeças num novo patamar, na sua versão sensorial de Tetris. Lumines também usava o esquema de empilhar polígonos, mas acrescentou ao problema luzes e sons. Para entender melhor, só jogando mesmo.
Com seus projetos, Mizuguchi deixava claro que não pertencia à corrente dos desenvolvedores que apostam suas fichas em histórias épicas. Os games são uma plataforma tão nova e inexplorada que é tolo investir apenas em enredos de cavaleiros medievais, ataques alienígenas ou infestação de zumbis, como entendem 90% de seus concorrentes. Aqui entra Child of Eden, um tratado sobre interatividade que reúne todas as boas ideias do autor no game mais coeso que já realizou.
Segundo Mizuguchi, o roteiro original era uma poesia em 40 páginas. Nela, descrevia um mundo virtual sendo dominado por um vírus. Tudo gira em torno de uma cantora espacial chamada Lumi, que podia observar a Terra apenas de longe através de diversas mídias. Mas nunca conseguiu ter uma experiência real in loco. Duzentos anos após a morte de Lumi, cientistas tentam recriar a consciência dela numa espécie de internet do futuro. O objetivo é mostrar como eram os sentimentos humanos que ela tanto observava. Até a chegada de um vírus.
O jogador é então jogado neste universo virtual e deve aniquilar a ameaça. Num ambiente que nem sequer pode ser considerado futurístico de tão abstrato, deve-se deixar envolver pelas imagens que saltam da tela. Atirar nos objetos hostis e, com isso, ir mudando o "humor" da fase. Quanto mais bem sucedido é o jogador nas fases baseadas em temas subjetivos como esperança ou felicidade , mais as luzes, cores e sons vão se transformando. É uma experiência quase onírica.
Child of Eden é uma espécie de Rez 2.0, mas em um mundo com Kinect. Usa o estilo "tiro em primeira pessoa", porém totalmente abstrato. Com o Kinect, que dispensa o uso de controles físicos, a ligação jogador-tela é ainda maior, principalmente numa televisão grande. Em pouco tempo, os movimentos se tornam naturais, perde-se a barreira da tela e o jogador e o jogo se tornam uma coisa só. Uma experiência que vai ao encontro dos estudos do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, que afirma ser possível uma ligação cérebro-máquina. De acordo com o cientista, cotado ao prêmio Nobel, o cérebro humano é facilmente adaptável a outros corpos, mesmo artificiais. Ele está sempre "escaneando" nosso corpo e criando uma espécie de imagem virtual do que somos. Milhares de vezes ao dia. Um jogo, ou uma tela, poderia ser entendido apenas como mais uma extensão de nossos corpos. Coincidência ou não, a Microsoft é um das empresas que mais investe em neurociência.
O argumento de Child of Eden diz que havia uma pessoa fora da nossa realidade que nos observava, nos entendia, mas nunca poderia nos tocar. O que é um jogador? Alguém que observa, participa e é impedido de ter uma experiência real dentro daquele mundo virtual. Lumi é uma metáfora perfeita para o acordo explícito entre o usuário e os videogames. Deixando isso claro desde o princípio, só resta entregar-se à imersão total e irracional.