A equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já indicou que pretende reavaliar incentivos fiscais concedidos pela União. A renúncia de receitas relacionada à isenção e à redução de impostos não é pequena: para 2023, a previsão da Receita Federal é de que o governo abra mão de R$ 456,1 bilhões em arrecadação, o que equivale a quase 4,3% do Produto Interno Bruto (PIB).
A ideia de rever incentivos fiscais aparece em meio à necessidade de acomodar gastos em um Orçamento com pouca margem de manobra. O novo governo precisará, por exemplo, incluir nas contas de 2023 o valor de R$ 600 para o Auxílio Brasil (antigo Bolsa Família), com um adicional de R$ 150 por criança de até seis anos. Como está, o Orçamento tem recursos para pagar R$ 405,21 mensais aos beneficiários.
Para isso, a equipe de transição já elaborou uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que retira não só os valores do programa, mas também outras despesas, do teto de gastos. Se a PEC for aprovada sem alterações, as despesas extras autorizadas somariam cerca de R$ 200 bilhões anuais, por quatro anos. Instituído em 2016, o teto é uma regra fiscal que limita o crescimento dos gastos públicos à correção pela inflação.
Na terça-feira (29), a PEC atingiu o número de assinaturas necessárias para que comece a tramitar no Senado, mas só deve ser apreciada na próxima semana, segundo o presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG).
Tendo em vista o aperto orçamentário, revisar isenções e reduções de impostos é uma forma de aumentar as receitas do governo, abrindo, assim, mais espaço para despesas.
Não se trata de uma solução para obedecer ao teto de gastos, pois ele limita as despesas, não importa qual seja o patamar das receitas. Porém, ampliar a arrecadação ajudaria não só a executar políticas públicas como poderia contribuir para melhorar o resultado primário das contas do governo, com efeito favorável sobre o endividamento público.
A União caminha para fechar 2022 com o primeiro superávit primário após oito anos no vermelho, mas muito desse resultado se deve a receitas extraordinárias, que não se repetirão em 2023. Não por acaso, a perspectiva para o próximo ano é de retorno do déficit.
Na prática, no entanto, o debate sobre as renúncias fiscais vai além do resultado das contas públicas e é bem mais complexo, tanto do ponto de vista político quanto técnico.
Outros governos já tentaram – e não conseguiram
De um lado, para rever esses benefícios é preciso que o governo faça costuras políticas e enfrente a pressão de grupos que não desejam ter incentivos retirados.
Essas articulações já começaram para o terceiro mandato de Lula, mesmo que o petista ainda não tenha tomado posse. No início de novembro, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), cogitava colocar em votação dois projetos que aumentariam a renúncia fiscal, elevando os limites do Simples Nacional e o valor da faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física, hoje em R$ 1.903,98. A chamada "pauta-bomba", porém, parece ter perdido força.
Enquanto isso, a redução a zero de tributos federais sobre combustíveis, lançada pelo governo de Jair Bolsonaro como medida temporária para ajudar a baixar os preços, com duração até 31 de dezembro deste ano, deve ser mantida em 2023. É o que prevê o Orçamento que o governo enviou ao Congresso.
Juliana Inhasz, professora do Insper, afirma que gestões diversas já foram criticadas por conta de incentivos tributários. O problema, diz a professora, é que a sociedade dificilmente entende benefícios fiscais como temporários. Assim, uma vez que eles são concedidos, há um custo político alto para que alterações sejam feitas, inclusive com impactos eleitorais.
“Os governos não gostam de definir prazos [para os incentivos] e cumpri-los, porque é como falar 'não' para o filho. É doído, os governos têm muita dificuldade”, explica.
A equipe de transição de Lula não é a primeira a levantar o assunto. Na campanha de 2018, o ministro da Economia do governo de Jair Bolsonaro (PL), Paulo Guedes, também prometeu reduzir benefícios. A diminuição chegou a ser incluída na PEC Emergencial, aprovada em 2021 para que o governo pudesse pagar o auxílio emergencial durante a pandemia de Covid-19.
O texto previa que os benefícios fossem reduzidos pela metade, para 2% do PIB, em um período de oito anos. Depois, porém, o próprio governo apresentou um cronograma em que reduziria os valores em apenas 6%. O Congresso, por sua vez, trabalhou para renovar um dos incentivos que estava prestes a acabar, a desoneração da folha de pagamentos.
A equipe econômica de Michel Temer (MDB) tampouco teve sucesso em promover mudanças. Em 2018, por exemplo, o governo ensaiou mudar a cobrança de IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) para fabricantes de xarope de refrigerante que atuam na Zona Franca de Manaus (ZFM). Mas, após a pressão de gigantes do setor, como Coca-Cola e Ambev, Temer recuou.
De 2017 para cá, segundo dados da Receita Federal, as desonerações ficaram acima 4% do PIB ao ano. As exceções foram os anos de 2021 e 2022, em que o Orçamento aprovado no Congresso previa que a renúncia com o Simples Nacional não deveria ser contabilizada como um "gasto tributário" – o jargão usado pela Receita Federal para denominar as renúncias fiscais.
A Receita define gastos tributários como despesas indiretas do governo, realizadas por meio do sistema de impostos, para atender objetivos econômicos e sociais. Esses gastos envolvem exceções na cobrança de tributos, “reduzindo a arrecadação potencial e, consequentemente, aumentando a disponibilidade econômica do contribuinte”. Confira a seguir a evolução desses benefícios nos últimos anos, em reais e em porcentagem do PIB (a reportagem prossegue após os gráficos).
Quais reduções de impostos merecem ser modificadas?
Além da questão política, mexer nos benefícios tributários envolve pensar os incentivos do ponto de vista técnico.
Na opinião de Inhasz, do Insper, a redução de impostos é frequentemente utilizada como uma forma de “tentar fazer com que a economia chegue onde o governo deseja” sem que haja um planejamento de longo prazo. “No Brasil, do jeito que são implementados há muitos anos, os incentivos são estímulos curtos, que dificilmente criam espaço para um crescimento mais persistente”, afirma a professora.
Segundo as projeções da Receita para 2023, a renúncia com maior valor é do Simples, programa que reduz e simplifica o pagamento de impostos para pequenas empresas. No ano que vem, o gasto tributário estimado do programa é de R$ 88,5 bilhões, de acordo com a Receita, o que equivale a 19,4% de todos os incentivos fiscais oferecidos pelo governo.
Há quem argumente, porém, que, sem essa redução de impostos, as empresas beneficiadas pelo Simples nem sequer existiriam, o que também teria impacto sobre as contas públicas e a economia como um todo.
Para Luis Carlos dos Santos, diretor de Tax da consultoria Mazars, a retirada de incentivos não pode acontecer de forma indiscriminada ou de uma hora para outra, apenas com o objetivo de aumentar o caixa do governo.
“É preciso rever [os gastos tributários], mas não com uma política de simplesmente retirá-los. Há contrapartidas desses benefícios que também afetam a economia. Essa avaliação precisa ser feita”, diz Santos.
Quanto os governos realmente deixam de arrecadar com benefícios tributários?
Há, ainda, uma imprecisão sobre o que pode mesmo ser considerado um gasto tributário.
Thiago Buschinelli Sorrentino, pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV Direito de São Paulo, diz que alguns estudiosos consideram que gastos com o Simples Nacional e com deduções do Imposto de Renda, por exemplo, estão previstos na Constituição. Por isso, para esses especialistas, os valores não poderiam ser considerados renúncias fiscais.
“Ninguém sabe exatamente qual é o tamanho das renúncias. Primeiro porque não há um consenso [do que é gasto tributário] nem entre quem estuda esse tema. Depois, porque muitos entes, incluindo estados e municípios, não são transparentes, não dão publicidade total aos benefícios que concedem”, diz Sorrentino.
Em relatório entregue à equipe de transição, o Tribunal de Contas da União (TCU) menciona esse problema, afirmando que a forma como benefícios tributários são instituídos no Brasil prejudica a transparência, o controle e até a efetividade desses incentivos.
"Os problemas sinalizam que os benefícios são concedidos sem planejamento adequado, não havendo real clareza quanto aos resultados buscados e ao impacto fiscal correspondente. Também não há avaliação prévia, para analisar se a opção pelo benefício tributário seria mais eficiente que realizar uma despesa orçamentária", diz o TCU no documento. "Mais grave ainda, uma vez aprovados, os benefícios tributários tendem a se perpetuar, sem que haja comprovação de que o custo associado à redução de receitas tributárias é compensado pelos benefícios gerados", prossegue o texto.
Boa parte dos benefício fiscais é criada sem prazo para acabar. E, mesmo quando há prazo, é comum que ele seja prorrogado, fazendo com que regimes tributários especiais ganhem caráter permanente.
É exemplar o caso da Zona Franca de Manaus. O incentivo fiscal foi criado por decreto-lei em 1967 e deveria durar até 1997, mas foi prorrogado quatro vezes desde então. Primeiro ele foi estendido até 2007, depois para 2013 e então 2023. Na última prorrogação, por meio de uma emenda constitucional promulgada em 2014, o prazo final do benefício foi empurrado para 2073 – isto é, mais de um século após a criação da ZFM.
Para Santos, da Mazars, discussão sobre as desonerações deve ser inserida em uma reforma tributária ampla, que está em discussão há décadas no Congresso. “Sempre há mais possibilidades de um governo aprovar reformas estruturantes no início, nos dois primeiros anos de mandato. Teria que acontecer algo nesse período [no próximo governo de Lula]”, afirma.
As cinco principais renúncias de tributos federais em 2023
- Simples Nacional – R$ 88,5 bilhões (19,4% do total de renúncias)
- Zona Franca de Manaus e áreas de livre comércio – R$ 55,3 bilhões (12,1%)
- Agricultura e agroindústria – R$ 53,9 bilhões (11,8%)
- Rendimentos isentos e não tributáveis do Imposto de Renda para Pessoa Física – R$ 45,3 bilhões (9,9%)
- Entidades sem fins lucrativos - imunes ou isentas – R$ 35,4 bilhões (7,8%)
Fonte: Receita Federal/PLOA 2023
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