Um estudo divulgado pelo extinto Ministério da Economia mostra que pouco mais de 57 mil normas entre leis, decretos e portarias processo de desburocratização. Desde que a Constituição de 1988 foi promulgada, foram criados mais de 7 milhões de atos normativos e legais.
O levantamento faz parte do relatório “Política Brasileira para Competitividade e Produtividade 2019-2022”, em que os técnicos da Secretaria Especial de Produtividade e Competitividade do Ministério da Economia (Sepec/ME) reúnem todas as medidas tomadas ao longo do governo de Jair Bolsonaro (PL) para reduzir a burocracia e melhorar o ambiente de negócios no país.
O estudo aponta que os técnicos do governo anterior identificaram 80,9 mil atos normativos regulatórios referentes à administração federal em 79 órgãos públicos, como ministérios, comandos militares, fundações, autarquias e a própria Presidência da República. Destes, 74,7 mil foram examinados e 31,6 mil revogados entre 2019 e março de 2022.
Outros 165,6 mil atos normativos foram identificados em 93 instituições federais de ensino e hospitais universitários vinculados ao Ministério da Educação, que também passaram por um pente fino dos técnicos da pasta. Foram examinados 99,5 mil atos e revogados 25,5 mil.
A revogação de atos considerados defasados ou sobrepostos por outros semelhantes foi determinada pelo decreto 10.139/19, criado para “promover a simplificação e revisão de todos os atos normativos inferiores a decreto”, diz a justificativa do estudo.
O decreto também torna obrigatório o processo de revisão periódica deste estoque de normativos existentes, “instituindo a repetição dos procedimentos de revisão e consolidação no início do primeiro ano de cada mandato presidencial com término até o segundo ano”.
Segundo os técnicos do então Ministério da Economia, esta prática torna o ambiente regulatório mais simples e objetivo, diminuindo a “complexidade dos processos administrativos e fortalecendo a segurança jurídica e, como consequência direta e mais importante, reduzindo o Custo Brasil”.
No entanto, esse estoque de normas da administração pública cresce mais rápido do que se consegue revogar. O estudo do ME se baseia em um levantamento feito em 2018 pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), quando existiam cerca de 6 milhões de atos em vigor desde a promulgação da Constituição de 1988. Embora seja uma entidade voltada ao estudo dos tributos, o IBPT realiza um levantamento mais amplo anualmente.
João Elói Olenike, presidente executivo do IBPT, conta que este número saltou para 7,1 milhões de normas em 2022 nas três esferas da administração pública, o que equivale a 829 novos atos por dia útil. Isso, segundo ele, torna o ambiente de negócios e a própria condução das rotinas do país um dos mais burocráticos do mundo.
“É quase um manicômio legislativo, é muito difícil de entender. A Constituição delegou poderes para as instituições e entidades governamentais para emitir uma série de normas que permitiram a outros órgãos internos também emitirem normas. São leis, decretos, instruções normativas, lei complementar, lei ordinária, leis delegadas, emendas à Constituição, medidas provisórias, portarias, circulares, e assim por diante”, explica exemplificando as normas que a Receita Federal emite para se interpretar as legislações aprovadas pelo Congresso.
E isso, diz, também ocorre nas esferas estaduais e municipais, com cada Assembleia Legislativa e Câmara Municipal editando suas leis que depois vão gerar normas das mais diversas em cada órgão ligado à administração pública, como Detran (Departamento Estadual de Trânsito), conselhos regionais, receitas estaduais, etc.
Isso cria uma insegurança jurídica prejudicial não apenas para as empresas de qualquer tamanho, que precisam ter uma assessoria jurídica sempre de prontidão, mas para a própria população. Acácio Miranda da Silva Filho, advogado especialista em Direito Constitucional e doutor em Direito Constitucional pelo IDP/DF, explica que “a depender das circunstâncias do momento, da ideologia do governo que esteja à frente do Poder Executivo, são modificadas de acordo com os interesses e pautas deste”.
“É um sistema que se retroalimenta, porque esses interesses momentâneos, por vezes, são acarretados pelas dificuldades anteriores. Obviamente, isso é ruim para a sociedade, porque o cidadão comum tem muita dificuldade na interpretação de tudo isso, que acaba reverberando numa burocracia exacerbada”, dispara Silva Filho.
Estados e municípios editaram quase a totalidade das normas em vigor
Segundo o estudo mais atualizado do IBPT, os estados e municípios são os que mais geraram normas desde a promulgação da Constituição de 1988. Dos 7,1 milhões de atos, 2 milhões são estaduais e 4,8 milhões municipais, divididos em leis complementares e ordinárias, decretos e normas complementares – são mais de cinco mil municípios em 26 estados e o Distrito Federal, o que explica a quantidade maior de normas.
Isso equivale a 814 normas por dia útil ao longo dos últimos 34 anos nos estados e municípios.
O presidente executivo do IBPT explica que as normas tributárias são as mais confusas, complicadas e paradoxais, pela falta de uma uniformidade entre os estados, mas com a arrecadação centralizada na União. São 154 mil normas estaduais e 273,9 mil municipais.
“O sistema tributário nacional é centralizador na União, que repassa aos estados e municípios, por exemplo, parte do Imposto de Renda e do IPI [Imposto sobre Produtos Industrializados]. Por que vai direto pra União e não para os estados e municípios? O município é o que tem que receber o dinheiro mais rápido, porque é onde estão as maiores demandas”, questiona João Elói Olenike.
Outra questão é o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), que virou o centro das atenções em 2022 após o Congresso aprovar duas legislações que impuseram um teto de cobrança para produtos considerados essenciais, como os combustíveis. Isso evidenciou a disparidade de alíquotas cobradas em alguns estados, aonde a gasolina chegava a ter uma incidência de até 34%.
Acácio Miranda da Silva Filho lembra que cada estado tem suas próprias normas de ICMS, concedendo benefícios fiscais para algumas determinadas empresas. Há, ainda, disparidades mesmo dentro dos próprios estados, como o ISS (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza) com diferentes alíquotas entre uma cidade e outra.
“Só na Grande São Paulo, por exemplo, você tem a cidade de São Paulo e mais 38 municípios. Isso deve dar umas 37 regulamentações distintas. O sujeito que presta um serviço em São Paulo e um em Barueri, vai sofrer uma regulamentação diferente em cada local. Isso cria um entrave diário e afeta a livre iniciativa do mercado, dos pequenos empreendedores, dos prestadores de serviços e até ao desenvolvimento econômico como um todo, dando margem para uma guerra fiscal entre os municípios”, afirma.
Olenike lembra que esse emaranhado de normas e atos faz com que as empresas gastem mais tempo e recursos com obrigações fiscais do que com sua própria contabilidade. “Tem que ter muito mais gente no setor fiscal para atender a burocracia do que pra fazer a efetiva contabilidade. Se tirar essa burocracia pesada em quantidade de leis, com certeza se reduz o custo das empresas”, arremata o executivo do IBPT.
O Ministério da Economia lembra que, desde que o decreto de revisão das normas foi implantado, o chamado Custo Brasil já foi reduzido. Embora não tenha números consolidados, a pasta afirma que, até 2019, se consumia R$ 1,5 trilhão em operações para cumprir todas as obrigações nas três esferas da administração pública.
Outro estudo recente da Atlas Network em parceria com o Instituto Liberal no Brasil, o “Índice de Burocracia na América Latina”, mostrou que o país é o menos burocrático entre 11 nações da região, com um gasto médio das pequenas e médias empresas de apenas 180 horas ao ano para cumprir as obrigações trabalhistas, operacionais e regulatórias. Na Argentina e na Venezuela, esse tempo é de cerca de 1.000 horas.
Reforma tributária vai ajudar, mas precisa ser acompanhada de um amplo processo de desburocratização
Segundo o IBPT, a proposta de reforma tributária que já tramita no Congresso Nacional vai ajudar a desatar um pouco essa emaranhada rede de taxas, tributos e contribuições. No entanto, apesar da simplificação de cinco impostos em apenas um, a arrecadação continuará desigual em cima da população.
“Vão fazer uma reforma que elimina alguns impostos e cria um no lugar deles que vai continuar incidindo diretamente no consumo, penalizando a população em geral independente da classe social dela. O mais correto seria tributar mais o patrimônio e renda e menos o consumo”, conclui João Elói Olenike.
Por outro lado, Acácio Miranda da Silva Filho explica que o governo deveria fazer um amplo esforço de desburocratização do Estado com normas fixas e mais claras que não levantem dúvidas dos seus reais propósitos. “Começando pelo caminho inverso, estabelecendo normas objetivas indicando as etapas a serem cumpridas em relação àquilo e, de acordo com as circunstâncias, o governo vai adequando-as. Mas, é importante que sejam fixas para que a própria população entenda quais são os caminhos a serem percorridos sem essa insegurança jurídica que permeia muito a nossa sociedade”, arremata.
Ambos os especialistas são unânimes em afirmar a necessidade de se criar um conselho que faça uma revisão completa nas normas existentes, de modo a simplificar os trâmites com a administração pública. Um dos exemplos mais citados é a Constituição dos Estados Unidos, que conta com apenas sete artigos e 27 emendas, enquanto que a brasileira já sofreu 125 emendas desde 1988.
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