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O descuido do governo com as contas públicas, com a conhecida tolerância do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) aos déficits fiscais e ao consequente aumento da dívida pública, pode ter um pesado custo para economia brasileira no longo prazo, dizem analistas liberais.
"Basta olhar para a Argentina e o que a ideologia do 'gasto [público] é vida' causou naquele país", afirma o professor Cláudio Shikida, do Ibmec Belo Horizonte e especialista do Instituto Millenium. A expressão "gasto é vida" é atribuída a Dilma Rousseff, então ministra-chefe da Casa Civil, quando rechaçou em 2005 uma proposta de déficit nominal zero estudada pelo Ministério da Fazenda, na época sob o comando de Antonio Palocci.
As projeções de bancos, consultorias e corretoras apontam para déficits primários (despesas superiores às receitas, sem contar os juros da dívida) e aumento do endividamento público pelo menos até 2027.
Por mais que a boa parte dos analistas não classifique esse cenário como catastrófico e demonstre uma certa condescendência com a gestão fiscal do governo, o panorama tende a se complicar caso não haja sinais claros de reversão dessa tendência.
A piora das contas públicas desde o início do atual mandato de Lula é indisfarçável.
Em 2022, o setor público teve superávit primário de R$ 126 bilhões – com a ajuda, vale citar, de dividendos de estatais, postergação do pagamento de precatórios e do efeito da inflação sobre a arrecadação. Como os gastos com juros somaram R$ 586,4 bilhões, o país fechou o ano com déficit nominal de R$ 460,4 bilhões.
Pouco mais de um ano depois, o país registrou, em janeiro de 2024, déficit primário de R$ 246 bilhões. O governo atribui boa parte desse valor à quitação de precatórios represados na gestão anterior e ao pagamento de compensações a estados e municípios; mesmo assim, o Ministério da Fazenda admite que haveria um déficit de mais de R$ 100 bilhões sem esses eventos.
O gasto com juros em 12 meses, enquanto isso, atingiu um recorde: quase R$ 746 bilhões. Juntando déficit primário com os juros da dívida, o déficit nominal passou de R$ 990 bilhões – apenas um pouco abaixo dos picos atingidos na pandemia.
Resultado: a dívida bruta do setor público passou de 71,4% do PIB no fim de 2022 para 75% do PIB no primeiro mês de 2024.
Apesar disso, bastou a notícia de um aumento na arrecadação federal em janeiro para Lula defender um aumento no limite de gastos do arcabouço fiscal – que mal entrou em vigor. Detalhe: enquanto a receita líquida da União cresceu 3% em termos reais no primeiro mês do ano, a despesa aumentou 6,8%. Quase o dobro da velocidade, portanto.
Descontrole fiscal na Argentina resultou em mais inflação e pobreza
A política de ênfase em gastos públicos fez com que o déficit primário argentino saltasse de 0,4% do PIB em 2019 para 2,9% do PIB no ano passado. É o reflexo de um problema mais antigo que ganhou tração durante a permanência da família Kirchner no poder, entre 2003 e 2015.
A moeda local, o peso argentino, enfrentou uma forte desvalorização a partir de 2019, refletindo a desconfiança internacional, com a cotação oficial passando de 59,90 pesos por dólar no final daquele ano para 865 na última sexta-feira (8). A inflação também se acelerou, passando de 53,8% em 2019 para 211,4% no ano passado.
A pobreza na Argentina cresceu, atingindo 57,4% da população, o maior índice em 20 anos, segundo o Observatório da Dívida Social da Universidade Católica da Argentina (UCA). Aumentou mais nas casas dos trabalhadores ou de famílias não beneficiárias de programas sociais.
A economia do país vizinho fechou o ano passado com uma queda de 1,5% do PIB, segundo estimativas do Itaú. Para 2024, a projeção indica um novo encolhimento, com a retração da atividade econômica prevista em 2,5% e o aumento do desemprego de 7% para 8,5%.
“As pessoas muitas vezes não percebem que o impacto econômico é, necessariamente, social. Se o PIB não cresce e se entra em uma recessão, fica fácil perceber que não há aspecto social sem o econômico”, ressalta Shikida.
Dificuldade de rolagem da dívida pública seria prenúncio de problemas
Analistas apontam que no Brasil, um dos primeiros reflexos de um maior descontrole fiscal pode ser na dificuldade de rolar a dívida pública. Isto afetaria a credibilidade do país no exterior, indicando altas no risco-país e na taxa de câmbio. Uma consequência dessas altas seria pressão sobre a inflação, já que muitas commodities e mercadorias são comercializadas em dólares.
O presidente do Instituto Liberal de São Paulo (Ilisp), Marcelo Faria, afirma que o mercado exigiria juros mais elevados para rolar a dívida, o que limitaria a economia privada, aumentando o custo do crédito e não favorecendo o emprego e a geração de renda.
O crédito mais caro também pesaria sobre os preços. As condições de financiamento das empresas piorariam, diz Demostenes Jonatas, professor de economia aplicada da Faculdade Presbiteriana Mackenzie de Brasília. Isto levaria a custos de produção mais elevados, refletindo-se nos preços dos bens e serviços.
“São cenários em que os mais pobres seriam mais impactados, devido ao crescimento do desemprego e à perda do poder aquisitivo. Os mais ricos teriam meios de proteger seu dinheiro por meio de aplicações financeiras”, afirma o especialista do Ilisp.
Analistas defendem ajuste fiscal pelo lado das despesas
Analistas apontam que, justamente por causa desses riscos, é necessário investir um ajuste fiscal pelo lado das despesas públicas. Mas o que o governo tenta fazer é um ajuste apenas pelo lado da arrecadação, sugando recursos que a iniciativa privada poderia aplicar em suas atividades.
“Sem essa revisão, no longo prazo haverá um aumento na carga tributária e na taxa de juros, o que significa menos crescimento e menos emprego”, destaca Faria.
Um dos caminhos apontados por Shikida é a necessidade de rever o arcabouço fiscal. O especialista diz que não é possível aumentar a arrecadação fiscal indefinidamente sem provocar uma desaceleração econômica.
“As evidências empíricas nos mostram que ajustes feitos, primordialmente, com aumentos de impostos geram recessões mais longas do que os que têm no corte de gastos a sua principal ferramenta. Deste modo, caminha-se para uma situação perigosa se nada for feito”, alerta.
Mesmo a estratégia de ajuste fiscal via receitas tem falhas: o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não tem conseguido aval do Congresso para todas as suas medidas arrecadatórias, o que torna ainda mais difícil zerar o déficit primário.
Risco de interferência em empresas privadas também preocupa
O risco de interferência em empresas privadas também preocupa, com analistas alertando para tentativas de implementar um dirigismo estatal na economia, semelhante ao que ocorreu na Argentina e Venezuela.
A tentativa de uma postura mais ‘dirigista’ do governo ficou mais evidente na tentativa de o governo emplacar o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega na presidência da Vale, uma das maiores empresas brasileiras. Ele foi o responsável por políticas econômicas que levaram à recessão de 2015-6.
Esta postura também ficou claro nas declarações do presidente Lula, durante entrevista à RedeTV no dia 27. Ele explicitou sua convicção de que as empresas devem seguir a orientação do governo em suas decisões. “O governo quer ser o principal ator da economia”, destaca Faria.
Shikida complementa, afirmando que a visão de que a economia deve se submeter ao desejo do estado é uma frase vazia e que tem uma perigosa semelhança com a ideologia fascista. “Quem é esse ‘Estado’ cujo desejo é absoluto?”, indaga.