A proposta de emenda à Constituição (PEC) apresentada pela equipe de transição e declarações do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), pioraram as expectativas para o custo do dinheiro no ano que vem.
Entre economistas que acompanham de perto a política monetária, ganhou terreno a avaliação de que o Banco Central pode demorar mais a cortar a taxa básica de juros (Selic), hoje em 13,75% ao ano. Assim, ela tende a terminar 2023 num nível mais alto que o esperado até pouco tempo atrás.
Além disso, nos últimos dias o mercado também passou a considerar "cenários alternativos" em que o Comitê de Política Monetária (Copom) pode não reduzir a taxa no próximo ano, ou até mesmo aumentá-la. Contribuiu para isso um alerta feito na sexta-feira (18) pelo presidente do BC, Roberto Campos Neto, que chamou atenção para o efeito das incertezas fiscais sobre a política de juros.
Ainda que por ora sejam vistas como menos prováveis, essas hipóteses mais pessimistas põem em dúvida aquela que é vista como a principal oportunidade da economia brasileira no ano que vem: o início da redução da taxa de juros.
A Selic é a taxa que remunera boa parte dos títulos públicos e serve de referência para os juros cobrados nos empréstimos bancários. Usada pelo Banco Central para combater a inflação, ela está no patamar mais alto dos últimos seis anos, o que inibe o consumo de bens financiados e o investimento produtivo, além de dificultar a quitação de dívidas.
Segundo a Serasa Experian, 68,4 milhões de brasileiros estavam inadimplentes em setembro, um recorde. Naquele mês, os pagamentos com atraso de mais de 90 dias correspondiam a 3,74% da carteira de crédito das pessoas físicas, o maior índice de calotes desde maio de 2020, de acordo com o BC.
Esse quadro conspira contra o crescimento econômico, que já dá sinais de desaceleração. Se para este ano as expectativas sugerem um aumento de 2,7% ou 2,8% no Produto Interno Bruto (PIB), para 2023 o consenso do mercado aponta para alta de apenas 0,7%. O Ministério da Economia, que reduziu sua projeção recentemente, prevê expansão de 2,1%.
Com PEC e falas de Lula, projeção para os juros subiu após dez semanas de estabilidade
Os primeiros sinais de revisão de cenário para os juros apareceram no boletim Focus divulgado na segunda-feira (21) pelo Banco Central. A mediana das expectativas de bancos e consultorias para a Selic ao fim de 2023, que ficou em 11,25% por dez semanas consecutivas, aumentou para 11,5%.
Trata-se de um ajuste ainda discreto, mas relevante, segundo o economista Rodolfo Margato, da corretora XP Investimentos. "Um sinal de que talvez, na visão do mercado, o espaço para o BC cortar juros fique limitado por conta das questões fiscais", anotou Margato em relatório.
Jason Vieira, economista-chefe da gestora de recursos Infinity Asset, via espaço para queda da Selic a partir do segundo semestre, com a taxa fechando 2023 em 10,75% ou 11%. Agora, crê que ela não cairá abaixo de 11,5%. "Quanto pior o sinal da área fiscal, maior a chance de o Copom inicialmente preservar o nível atual da Selic, o que por si só já seria um aperto monetário", diz.
A CM Capital ainda mantém como hipótese principal uma queda da Selic a partir de maio, para chegar ao fim de 2023 em 11,75%. A corretora vê uma conjuntura internacional "muito desafiadora" em razão da alta dos juros nos Estados Unidos e outros países.
"Mas a política fiscal pode ter impacto nisso, sim, se houver 'desancoragem' das expectativas, com expansão de despesas públicas sem contrapartida de receitas, mais endividamento e prêmio de risco", diz o economista Matheus Pizzani, da CM. Ele vê chances de manutenção da Selic no atual nível por mais tempo ou, em último caso, um aumento "residual" para 14% ao ano em fevereiro.
Para Maria Cândida Naegele, sócia e assessora de investimento da HCI Investimentos, sinais de descontrole das contas públicas farão o BC demorar mais a baixar os juros. "Elevar eu acho difícil, porque o aperto monetário feito desde março de 2021 [quando a Selic estava em apenas 2% ao ano] foi grande", diz Naegele, que também é planejadora financeira pela associação Planejar.
PEC para furar o teto trouxe "buraco" maior que o esperado
O plano do governo eleito é liberar despesas de cerca de R$ 200 bilhões por ano fora do teto de gastos, e por tempo indeterminado. O objetivo é garantir um Bolsa Família de R$ 600 com adicional de R$ 150 por criança, ampliar o investimento público e cumprir promessas de campanha como o aumento real do salário mínimo.
O mercado já contava algum tipo de "licença para gastar" no ano que vem, pois tanto Lula quanto o presidente Jair Bolsonaro (PL) fizeram promessas de campanha que não cabiam sob o teto de gastos. Mas a PEC apresentada pelo vice-presidente eleito e coordenador da transição, Geraldo Alckmin (PSB), veio além do imaginado. Em paralelo, Lula deu declarações questionando a prioridade ao equilíbrio fiscal e desdenhando das reações do mercado.
"Uma PEC com prazo indeterminado e licença de R$ 200 bilhões é muita coisa. Se aprovada como está, vamos para nosso cenário alternativo, que pode ser chamado de pessimista, com a Selic indo a 16% até o fim de 2023", diz Gabriel Fongaro, economista sênior da gestora de patrimônio Julius Baer Family Office (JBFO).
No cenário-base da JBFO, mais conservador que a média do mercado, o Banco Central começa a cortar os juros apenas em setembro, levando a Selic a 12% até o fim de 2023. "Ainda estamos em compasso de espera, sem revisar o cenário-base. Mas antes havia um viés de antecipação no ciclo de cortes, que levaria a Selic para mais perto de 10%, e agora acho isso pouco provável", diz Fongaro.
No entanto, ele não acredita que a PEC passe como está, e por isso ainda vê como menos provável uma retomada de altas da Selic. "Por causa de três reações: do mercado, de personalidades que apoiaram o Lula e demonstram insatisfação, e do Roberto Campos Neto, avisando que o Banco Central está de olho no fiscal e que pode voltar a subir os juros se vier algo muito ruim", complementa Fongaro.
Na sexta-feira, Campos Neto disse em evento que o mercado "precificava" o início do corte dos juros entre fevereiro e junho, mas que "agora a precificação é de alta no curto prazo em função de incertezas fiscais". "De acordo com as expectativas do mercado, ainda há trabalho a ser feito no curto prazo", afirmou.
"A fala do Roberto Campos Neto reforçou que, se política fiscal atrapalhar a convergência da inflação para a meta, o Copom e os juros teriam que reagir", diz Marco Caruso, economista-chefe do banco Original. "Mas ainda não temos nada de concreto, então ainda me parece precipitado esperar altas da Selic já nas próximas reuniões, como está precificado na curva de juros futuros."
Governo eleito precisa ajustar a linguagem, diz economista; petistas veem mercado "injusto"
O economista Flávio Saraiva, coordenador do curso de Economia da escola de negócios IBS Americas, avalia que o governo eleito precisa ajustar a comunicação.
"Qualquer passo errado que se dê, qualquer problema de comunicação, o mercado responde rápido. O futuro governo tem que ajustar o discurso, a linguagem, e deixar mais claro que precisa do dinheiro para programas sociais e que haverá fonte de financiamento", diz. "Se for torneira aberta, isso se volta rápido contra o governo e a sociedade, contra os mais vulneráveis."
Para Marcos Ferrari, que foi secretário no Ministério da Fazenda do governo Dilma (PT) e no Ministério do Planejamento do governo Temer (MDB), a discussão fiscal está "no fio da navalha". Mas ele não vê "intenções de descontrole fiscal".
"Se a decisão for de encaminhar agora apenas as demandas do auxílio e sinalizar a discussão para 2023, com calma, de um novo pacto fiscal, não acredito que haverá alteração relevante nas decisões do Banco Central sobre a Selic”, diz o economista, que hoje é presidente executivo da Conexis, representante das operadoras de telecomunicações.
Em 10 de novembro, a senadora Simone Tebet (MDB-MS), que disputou a eleição presidencial e agora está na equipe de transição, defendeu que o primeiro ministro a ser indicado seja o da Fazenda, de forma a evitar "ruídos" provocados por declarações de Lula.
Porém, essa não parece ser a percepção majoritária no entorno do presidente eleito. Reportagem da Gazeta do Povo mostrou que aliados apostam mais no histórico de Lula e na própria evolução da transição para acalmar o mercado. A avaliação é de que o mercado estaria sendo "injusto" com o presidente eleito.
"O presidente Lula não cede a pressões. Ele indicará o Ministro da Fazenda quando acreditar que deve indicar", disse o deputado federal Enio Verri (PT-PR), também da equipe de transição.
Nesta segunda-feira, a presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann (PR), afirmou que Lula não deve anunciar ministros nesta semana. "Acho que essa semana é muito difícil. Eu acho que ele não está com tanta pressa. O pessoal do mercado que está mais ansioso. Acho que ele está com a coisa bem resolvida na cabeça", disse.
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