No primeiro semestre de 2022, a União desembolsou R$ 4,62 bilhões para quitar dívidas atrasadas de estados. Este valor representa alta de 1,3% ao que foi pago no primeiro semestre de 2021. De 2016 para cá, a União já pagou R$ 46,53 bilhões para honrar empréstimos para estados e municípios, segundo o Relatório de Garantias Honradas pela União, divulgado pelo Tesouro Nacional em 7 de julho.
O problema atual decorre principalmente de decisões políticas tomadas a partir de 2007 pelo próprio governo federal, quando facilitou o crédito para que todos os entes aumentassem o investimento público, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).
Como fiadora dos empréstimos, a União é obrigada a fazer os pagamentos quando há inadimplência do credor. Depois disso, inicia o processo para recuperar o crédito, que costuma se dar por bloqueios no Fundo de Participação dos Estados (FPE) ou Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Entretanto, segundo a página do Tesouro Nacional sobre o tema, medidas liminares expedidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) vêm impedindo a União de executar as contragarantias, que são justamente a forma para recuperar os valores pagos.
“Se por um lado é verdade que o endividamento aumenta a capacidade de investimento de um governo hoje, por outro lado ele compromete as ações futuras desse mesmo governo, devido ao pagamento dos compromissos financeiros assumidos pela dívida”, diz a página especial do Tesouro sobre o tema.
A argumentação é bem simples, mas vem sendo ignorada reiteradamente pelos governantes nos últimos anos. Isso é o que aponta um dos artigos da coletânea de artigos “Para não esquecer: políticas públicas que empobrecem o Brasil”, organizado pelo economista e pesquisador do Insper Marcos Mendes.
No capítulo “Estímulo ao endividamento de estados e municípios”, Acauã Brochado e Itanielson Cruz, ambos auditores de controle do Tesouro Nacional, mostram os erros cometidos nos financiamentos dos entes subnacionais, que nos últimos anos chegaram a um quadro de deterioração financeira e até insolvência, em alguns casos.
Euforia com Copa e visão política facilitaram empréstimos
Os autores fazem um breve histórico das contas regionais e apontam que na virada do século ocorreram as maiores renegociações de dívidas de estados e municípios da história brasileira, que chegaram a quase 15% do PIB do país. A partir disso é que a maior parte da dívida desses entes passou a ter a União como credora. Com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), de 2000, criaram-se amarras legais que dificultavam o endividamento e houve “um bem-sucedido incentivo ao ajuste fiscal”, afirmam os autores.
Entretanto, a partir de 2007 houve uma mudança significativa no curso dessa política. Segundo eles, o governo federal partiu da premissa do desenvolvimento via investimento público, o que contribuiria para o crescimento econômico, de forma a ampliar a arrecadação e garantir o pagamento da dívida contratada.
Nessa época foi lançado o PAC e também começaram os preparativos do Brasil para receber a Copa do Mundo de 2014. Os governantes agiam dominados por uma expectativa de crescimento constante – mal embasada na descoberta do pré-sal –, e pleiteavam mais financiamentos. Com a União como fiadora, com base no arcabouço legal criado pela LRF, imaginou-se que os contratos seriam respeitados.
Os autores explicam que um dos principais requisitos para receber garantias do Tesouro Nacional era ter uma boa nota na capacidade de pagamento (Capag), mas que isso podia ser flexibilizado caso o Ministério da Fazenda concluísse que a operação era relevante para a União – nesse caso, entes com nota “C” ou “D” não tiveram dificuldades para conseguir empréstimos, mesmo com indicadores fiscais bem abaixo daqueles entes com notas “A” ou “B”.
“Para se ter uma ideia do uso do instituto da excepcionalização da Capag, entre 2012 e 2014, o Ministério da Fazenda concedeu garantia a entes com Capag “C” ou “D” no valor total de R$ 87 bilhões. Esse valor superou as operações de crédito daqueles classificados como “A” ou “B” no mesmo período, que contrataram R$ 68 bilhões”, escrevem.
Em outra frente, a União capitalizou os bancos públicos federais para aumentar a oferta de crédito, principalmente por meio da Caixa Econômica Federal e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), além de atuar junto a organismos multilaterais, especialmente Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Essas ações se refletiram em números, mostra o artigo: a média anual de pleitos de operações de crédito de estados e municípios entre 2002 e 2007 deferidos pela Secretaria do Tesouro Nacional foi de R$ 4,5 bilhões; em 2008, esse valor subiu para R$ 18 bilhões; e em 2013 chegou a R$ 75 bilhões. No período de 2008 a 2014, a média anual foi de R$ 36,4 bilhões, oito vezes mais que a média anual do período anterior.
“No fim da década passada, contudo, a combinação de crise econômica, guerra fiscal e crescimento dos gastos com pessoal em alguns entes reduziu a capacidade de acomodação de interesses no orçamento. Subestimava-se a importância de problemas de fluxo de caixa, que, não raro, ocorrem mesmo em entes com indicadores fiscais usuais aparentemente saudáveis. Com isso, pode ocorrer de estado ou município terem bons indicadores de endividamento e de resultado primário, mas estarem desequilibrados”, explicam os autores. Além disso, o grande acesso ao crédito também não causou aumentos no investimento público.
Por volta de 2015, a União agiu para restringir o crédito aos estados e municípios e diminuir a exposição da União, justamente em momento de crise econômica e estrangulamento das receitas. Os autores lembram que vários entes subnacionais (estados e municípios) passaram a judicializar os contratos de refinanciamento e de garantia da União com o propósito de diminuir seus pagamentos. Esse é o cenário descrito nas primeiras linhas deste texto, sobre o gasto do Tesouro Nacional com honras de garantias não recuperadas.
“Outros importantes prejudicados foram os estados e municípios em boa situação fiscal, que viram o total de crédito disponível diminuir, a despeito de terem condições de contratar novas operações”, destaca o artigo, mostrando o ônus para toda a sociedade.
Para tentar obter receitas fora das amarras criadas, vários entes subnacionais passaram a adotar práticas heterodoxas, apontam os auditores de controle do Tesouro Nacional.
“Houve, ainda, sobretudo entre 2012 e 2017, casos em que o estado ou o município alterou a estrutura dos fundos do regime de previdência de servidores para permitir o gasto dos recursos acumulados em fundos capitalizados e, assim, reduzir os aportes de recursos do tesouro local para a cobertura dos déficits previdenciários correntes. Por fim, o último exemplo de financiamento heterodoxo foi o saque de recursos de depósitos administrativos ou judiciais. Especialmente no caso em que o estado não é parte do litígio”, escreveram.
Brasil precisa retomar reequilíbrio fiscal
Os autores alertam para a necessidade de evitar novas políticas que recorram aos mesmos erros descritos, de dar crédito a entes em situação fiscal frágil. Para eles, é preciso melhorar gradualmente os sistemas de controles da União, com foco na “criação de válvulas de escape nas restrições de endividamento para que os casos graves tenham soluções ordenadas”; e desenhar mecanismos de incentivo adequados, para premiar entes subnacionais prudentes e responsáveis. “Em qualquer caso, a transparência sobre a situação fiscal e as ações dos governos é condição fundamental”, concluem.
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