A captura cada vez mais evidente do Orçamento da União pelo Congresso Nacional tem transformado o investimento público numa colcha de retalhos com pouco ou nenhum planejamento lógico na distribuição dos recursos. Descentralização na aprovação dos pedidos, negociatas entre parlamentares e municípios e a alta quantidade de emendas orçamentárias apresentadas pelos congressistas, que beiram 7 mil por ano, são alguns dos aspectos que pioram a qualidade do investimento público.
A questão da má qualidade do investimento, porém, não tem a ver só com as emendas do relator, que ficaram conhecidas como orçamento secreto e estão sob julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), que retoma a análise do tema nesta quarta-feira (14).
Há outros três tipos: as emendas individuais, de bancada e de comissão. Cada parlamentar pode apresentar até 25 individuais e as comissões permanentes podem apresentar entre quatro e oito emendas, a depender da temática. O Senado tem 11 comissões permanentes, enquanto na Câmara são 21. Dessa forma, entre emendas individuais e coletivas, o orçamento pode receber anualmente mais de 15 mil emendas.
Para 2023, os parlamentares apresentaram 6.575 emendas individuais e coletivas, que totalizam R$ 234,3 bilhões, de acordo com a Comissão Mista de Orçamento. Pelo menos R$ 11,7 bilhões correspondem às individuais impositivas e outros R$ 7,7 bilhões são de impositivas das bancadas estaduais, ou seja, valores que a União é obrigada a destinar aos parlamentares. O restante é dinheiro solicitado, mas que o Executivo não tem a obrigação de entregar.
Essa forma de organização do Orçamento é problemática porque os recursos solicitados via emenda são destinados a incontáveis pequenas obras, sem planejamento integrado. São, em geral, projetos desenvolvidos sem considerar o entorno e o contexto regional, já que muitas vezes são negociados diretamente com prefeitos e vereadores.
“O que ocorre hoje é uma desconexão entre as propostas que os parlamentares fazem e as políticas públicas que estão sendo desenvolvidas, implementadas, pelo Poder Executivo. Há estudos que mostram como isso afeta, por exemplo, a área de saúde”, explica Hélio Tollini, economista e consultor de Orçamento da Câmara dos Deputados.
Como as emendas fragmentam o investimento público
Em uma situação hipotética, imagine duas cidades pequenas e vizinhas, no interior de um estado. A “Cidade A” consegue negociar com um deputado federal o destino de recursos para a construção de um hospital que pode funcionar como referência regional. A "Cidade B", em conversa com outro deputado, faz o mesmo. Resultado: dois hospitais são construídos na mesma região, onde não há demanda, enquanto outra região do estado, que não tem estrutura adequada de saúde, permanece sem atendimento.
“Isso distorce completamente a lógica do orçamento federal, pois ao invés de os recursos de investimentos federais serem utilizados em projetos estruturantes e de integração, acabam sendo diluídos numa miríade de pequenos investimentos sem impacto nacional algum”, complementa o economista Fabio Giambiagi, pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).
Emendas do "orçamento secreto" ampliam poder do Congresso sem transparência
Modalidade tornou mais complexa a distribuição de recursos via emenda orçamentária, as emendas de relator são chamadas de “orçamento secreto” justamente porque são pouco transparentes: não é possível saber para quem ou para onde a verba está sendo direcionada. Institucionalizado no governo de Jair Bolsonaro (PL), esse formato pode vir a ser mantido no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em nome da governabilidade e da boa relação com o Congresso, caso o STF não proíba o orçamento secreto.
As emendas de relator são vistas com muitas ressalvas por especialistas. Primeiro, porque o formato consegue burlar as diversas ferramentas de transparência pelas quais o Brasil é reconhecido internacionalmente.
“Elas conferem um poder enorme, atualmente, à cúpula do Congresso e têm uma utilização que não está aberta ao escrutínio público da mesma forma que ocorre com as demais emendas. Por outro lado, elas podem ser contingenciadas, uma vez que não têm a obrigatoriedade [de execução] associada por exemplo às emendas individuais. Na prática, porém, devido à estreita relação entre a Presidência da Câmara e o Executivo nestes últimos dois anos, de um modo geral essas emendas de fato têm sido executadas, com os recursos tendo sido assegurados pela equipe econômica”, diz Giambiagi.
O segundo problema é que há uma distorção na leitura do volume de recursos destinados às emendas, segundo os economistas Marcos Mendes e Fabio Giambiagi, pesquisadores do Ibre/FGV, e Paulo Hartung, ex-governador do Espírito Santo. A parcela do Orçamento capturada por elas é muito maior do que parlamentares querem fazer parecer.
Os autores explicam que apenas 7% do orçamento federal é usado para despesas discricionárias, ou seja, investimento em infraestrutura e manutenção ou implementação de novos programas. E quase um terço desse total é definido por meio de emendas.
“Para 2023, a soma de todas as despesas discricionárias, aí incluídas todas as modalidades de emendas, é de R$ 118 bilhões. As emendas de relator representam R$ 19 bilhões desse total, e as emendas individuais e de bancada, outros R$ 19 bilhões. Assim, o peso das emendas de relator é de 16% da parcela não rígida do orçamento, e o peso das emendas totais chega a 32%”, diz trecho de artigo assinado pelos três economistas.
Alguns parlamentares, porém, dizem que o valor das emendas não chega a 1% do total do orçamento. O líder do União Brasil, Elmar Nascimento (BA), afirmou no fim de outubro que a parcela indicada pelos parlamentares é de apenas 0,03%.
Na verdade, explicam Hartung, Mendes e Giambiagi, a divisão do valor das emendas de relator em 2023 (R$ 19 bilhões) pelo valor total do orçamento (R$ 5,2 trilhões) resulta em 0,4% e não em 0,03%.
Além desse erro aritmético, há erros conceituais na tentativa de comparar as emendas com o valor global do orçamento, segundo os pesquisadores.
O orçamento total inclui as dotações para a rolagem da dívida pública, que não estão disponíveis para outros fins, nem mesmo para despesas à escolha do Poder Executivo. Além disso, excluindo a rolagem da dívida, sobram R$ 3,2 trilhões, dos quais mais de 93% são gastos obrigatórios (como salários e aposentadorias), que, como diz o nome, não são de livre escolha.
Como o investimento público pode melhorar a partir do Congresso
Os pesquisadores apontam algumas alternativas que poderiam tornar mais eficiente o investimento público a partir das ações do Congresso. Para Giambiagi, “o ambiente de formação de um novo governo é propício a que essas questões sejam rediscutidas e se defina um novo arranjo, mais satisfatório que o atual”.
Entre as medidas que seriam eficientes, de acordo com o artigo publicado pelos economistas do Ibre/FGV, estão ações como:
- limitar o valor das emendas parlamentares a R$ 15 bilhões;
- tornar obrigatória a execução das obras;
- vedar a instauração de programas e instrumentos a partir de emendas; e
- criar um banco de projetos de investimentos pré-aprovados para acelerar as aprovações.
Além disso, o uso de critérios técnicos a partir de comissões especializadas é outra iniciativa que poderia diminuir a fragmentação das obras resultantes das emendas individuais.
Uma reforma que redirecione a solicitação de recursos somente via comissões temáticas faria com que dinheiro público gerasse resultados mais eficientes para a população, conforme explica Tollini, consultor de Orçamento da Câmara.
“O objetivo é que os parlamentares especializados em determinados assuntos sejam os responsáveis por decidir qual a programação que será aprovada no orçamento da União para aquele setor”, diz Tollini.
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