À primeira vista, o organograma da empresa que produz o “True Story” – um jogo de cartas e aplicativo móvel em que os jogadores contam histórias reais de suas vidas cotidianas – se parecia com o de qualquer outra empresa. Havia uma divisão de conteúdo para produzir cópias de jogos de cartas; designers gráficos para criar o logo e a embalagem; desenvolvedores para criar o aplicativo móvel e o site. Havia até uma divisão de testes para encontrar possíveis bugs no programa.
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Porém, quem olhava de perto percebia que a produtora da True Story não era uma empresa de verdade: os trabalhadores eram todos freelancers que em geral nunca se encontravam e o mais impressionante é que a organização toda existiu exclusivamente para criar o jogo, desaparecendo em seguida.
True Story é um estudo de caso daquilo que dois professores de Stanford chamam de “empresas relâmpago” – organizações efêmeras cujo objetivo é a realização de um único projeto complexo de forma geralmente associada a empresas de grande porte, ONGs e governos.
Os professores, Michael Bernstein e Melissa Valentine, afirmam que a tecnologia da informação viabilizou o aparecimento das empresas relâmpago em diversos setores.
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Além disso, inúmeros intermediários já estão aparecendo em setores como o de desenvolvimento de software e a indústria farmacêutica para criar esse tipo de organização. Eles dependem muito de dados e algoritmos para determinar quais trabalhadores trabalham melhor uns com os outros, mas também dependem de outras inovações menos tecnológicas, como a gestão intermediária.
Porém, as organizações temporárias aumentam a incerteza econômica que é parte cada vez mais frequente da vida dos trabalhadores, à medida que começam a substituir equipes permanentes.
Não é uma novidade
Naturalmente, empresas temporárias capazes de realizar projetos complicados já existem há décadas, especialmente em lugares como Hollywood, onde os produtores reúnem equipes de diretores, roteiristas, atores, figurinistas e cenógrafos, além de uma série de outros artistas e técnicos para executar projetos.
Em princípio, muitas empresas poderiam achar mais lucrativo aumentar o número de funcionários quando necessário, ao invés de manter uma presença permanente. Os economistas argumentam há bastante tempo que o que impede que isso se torne realidade são os custos proibitivos da mecânica da contratação, treinamento e monitoramento dos trabalhadores dos projetos específicos.
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Porém, Valentine, que estuda ciências da gestão, e Bernstein, que é cientista da computação, destacam que a tecnologia está diminuindo drasticamente esses custos.
“Acreditamos que a computação traga a oportunidade de diminuir drasticamente vários desses custos de formas que as empresas tradicionais ainda não perceberam”, afirmou Bernstein. “Agora é muito mais fácil procurar pessoas, negociar com elas e contratá-las”.
Existem algumas evidências de que o mundo corporativo – que passou décadas contratando funcionários terceirizados e empresas de consultoria – já está adotando a estrutura das organizações temporárias. Em 2007, Jody Miller, antiga executiva de mídia e capitalista de risco, era uma das fundadoras do Business Talent Group, que criava equipes temporárias de freelancers para grandes corporações.
“Nós somos os produtores. Sabemos como avaliar os talentos e montar uma equipe”, afirmou Miller.
Equipes temporárias
Alguns dos maiores clientes de Miller estão no setor farmacêutico, cuja economia não é muito diferente de Hollywood, na medida em que se baseia em projetos e um conjunto limitado de campeões de venda é responsável pela maior parte dos lucros. As equipes do Business Talent Group frequentemente trabalham nas etapas iniciais de um novo medicamento – estabelecendo a estratégia para chegar a grupos de pacientes, jornalistas, médicos e planos de saúde –, além de ajudar a estabelecer novos mercados para medicamentos que já existem.
Intermediários similares já surgiram em outros setores. No mundo da alta tecnologia existe a Gigster, uma plataforma criada em 2014 para reunir freelancers e criar equipes para a criação de softwares, para que um empreendedor sem conhecimento técnico seja capaz de chegar com uma ideia e sair com um aplicativo plenamente funcional em poucos meses, ou um protótipo em semanas.
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No setor de entretenimento há a Artella, uma plataforma que ajuda animadores, designers de som e outros talentos a criarem equipes para produzir filmes de animação. Ao fornecer ferramentas técnicas de alto custo, a Artella pode um dia permitir que os freelancers concorram com grandes estúdios.
Valentine e Bernstein queriam levar o conceito um passo adiante. Eles criaram uma plataforma, a Foundry, na qual o processo de composição e gestão de empresas temporárias pudesse ser automatizado, sem um telefonema sequer.
Três lições importantes
O modelo das empresas relâmpago ensina três importantes lições: a primeira é que as plataformas costumam depender muito de dados e computadores. Roger Dickey, um dos fundadores do Gigster, afirma que todos os integrantes das equipes formadas pela empresa avaliam todos os outros membros, gerando de 20 a 30 pontos de dados por pessoa a cada projeto. Em seguida, ferramentas de inteligência artificial observem os padrões e ajudam a empresa a determinar as melhores formas de criar as próximas equipes.
A segunda lição é a importância de papéis bem estabelecidos. Sociólogos e teóricos da organização se impressionam há décadas com a forma com que equipes de resposta a desastres e unidades de terapia intensiva realizam tarefas complexas, mesmo quando nunca se encontraram antes, uma vez que a divisão do trabalho é uma premissa compartilhada por todos.
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O mesmo vale para as equipes relâmpago. Dave Summa, que trabalhou em uma equipe reunida pelo Business Talent Group para assessorar uma grande empresa do agronegócio sobre os mercados onde competir, afirmou que sua tarefa era definir as questões que precisavam ser respondidas, assim como o método de análise, ao passo que um colega supervisionou os trabalhadores que produziam planos específicos.
“Ele era muito detalhista e meticuloso”, afirmou Summa. “Ele me deixava fazer as coisas que faço bem e eu deixava ele fazer as coisas que faz melhor”.
Por fim, a inovação menos provável de todas: a gestão intermediária. O freelancer típico costuma realizar os trabalhos mais braçais. Por outro lado, as empresas relâmpago costumam combinar trabalhadores e gestores.
Ideais para projetos com vida útil bem definida
Elas têm limites óbvios. Costumam funcionar melhor para projetos com vida útil bem definida, mas não para relações de longa duração. A Microsoft provavelmente não criaria uma equipe dessa natureza para criar o próximo Windows, uma vez que a empresa lança uma versão nova de tempos em tempos.
Ainda assim, o modelo parece ter um potencial revolucionário. Milhões de vagas de gestão intermediária que desapareceram nas últimas décadas podem ressurgir na forma de gerentes de projeto freelancers. “O atual gargalo são os gerentes de projeto. É bem difícil encontrar trabalhadores para essa posição”, afirmou Valentine.
Ainda assim, embora fomente a flexibilidade, esse modelo pode causar insegurança. Empresas temporárias dificilmente forneceriam benefícios de saúde ou aposentadoria. E mesmo que trabalhadores altamente especializados, como gestores de projeto e desenvolvedores web se sintam bem recompensados no mercado aberto, afirmou Lawrence Katz, economista de Harvard, trabalhadores menos especializados costumam encontrar situações mais difíceis fora das empresas.
Bernstein reconhece que a ansiedade é legítima, embora afirme que as plataformas possam diminuir a insegurança desempenhando papeis ocupados historicamente pelas empresas: como fornecer benefícios, completar a renda dos freelancers, caso o salário esteja baixo ou inconstante demais, e até permitir que os trabalhadores se organizem:
Essa pode ser uma força tremenda para muitas pessoas no futuro. Mas do ponto de vista das políticas públicas, ainda precisamos descobrir como empoderar os trabalhadores quando os contratos duram poucos minutos, ou poucas semanas