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Apesar da aprovação de diversas medidas voltadas ao aumento de arrecadação federal, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, acumula também uma série de recuos e derrotas que frustram seus planos à frente da política econômica do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Diante de um cenário fiscal pouco favorável e sob o risco de ver aprovadas “pautas-bomba”, o ministro se viu obrigado a rever em poucos meses a meta de resultado primário que ele próprio definira.
Enfraquecido especialmente em razão de seus consecutivos reveses na tentativa de eliminar o gasto com a desoneração da folha de pagamento de empresas e de municípios, o ministro é defendido publicamente pelo chefe do Executivo. Dentro do partido e do próprio governo, no entanto, tem sofrido com o “fogo amigo” desde o início da atual gestão.
Confira a seguir os principais recuos e derrotas de Haddad desde o início do atual governo.
Retomada da cobrança de PIS, Cofins e Cide sobre combustíveis
O primeiro plano frustrado de Haddad ocorreu ainda no fim de 2022, antes da posse de Lula. Já preocupado em elevar a arrecadação da União, o então futuro ministro da Fazenda queria retomar a cobrança de PIS, Cofins e Cide sobre combustíveis a partir de 1º de janeiro de 2023.
As alíquotas dos impostos haviam sido zeradas em meados de 2022 no governo de Jair Bolsonaro (PL), como uma forma de baixar os preços dos derivados de petróleo às vésperas do início da campanha para as eleições presidenciais daquele ano.
Temendo um desgaste à imagem do governo que acabara de ser eleito e um impacto dos preços dos combustíveis sobre a inflação, uma ala do PT, liderada pela presidente do partido, Gleisi Hoffmann, se opôs a Haddad e defendeu a prorrogação do benefício.
Lula tomou o lado da direção do partido e, em uma medida provisória (MP) assinada em 1.º de janeiro de 2023, o dia da posse, estendeu a alíquota zero dos tributos federais sobre gasolina e etanol por dois meses, enquanto diesel e gás de cozinha ficaram livres da taxação federal até 31 de dezembro de 2023.
Fim da isenção para compras internacionais de até US$ 50
Em outra frente para aumentar a receita com tributos, ainda em abril de 2023 o Ministério da Fazenda anunciou que acabaria com a isenção do imposto de importação sobre remessas internacionais de até US$ 50 entre pessoas físicas. A repercussão negativa, no entanto, fez Haddad recuar e adiar os planos.
O objetivo era combater fraudes cometidas por empresas estrangeiras que vendiam produtos por plataformas de e-commerce e declaravam dados falsos sobre remetente e conteúdo de forma a se livrar de impostos. A expectativa do governo era elevar em R$ 8 bilhões a arrecadação. A medida atenderia ainda varejistas nacionais, que consideram que o benefício tributário a compras importadas cria um ambiente de concorrência desleal.
A proposta veio a público em uma entrevista concedida pelo secretário especial da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, mas gerou uma onda de críticas ao governo, notadamente em redes sociais. Opositores classificaram a ideia como uma afronta à população de menor renda, que consome mercadorias importadas por e-commerce em razão dos preços mais baixos.
A ideia gerou desgaste até mesmo no PT. Integrantes da sigla consideram que a medida, se levada adiante, afetaria diretamente a popularidade do partido e do governo. Após toda a repercussão negativa, Lula desautorizou Haddad de levar a ideia a cabo.
Os planos foram revistos e, meses depois, a Receita Federal anunciou a criação do programa Remessa Conforme, por meio do qual empresas que comercializam produtos importados poderiam manter a isenção para encomendas de até US$ 50 – acima disso, no entanto, as compras passaram a ser taxadas na fonte, com a alíquota de 60%.
Além disso, todas as compras passaram a recolher ICMS, tributo estadual, também na origem, acabando com a possibilidade de remessas passarem pela alfândega sem tributação.
Recentemente o Congresso Nacional aprovou projeto de lei que acaba com a isenção das compras de até US$ 50, porém fixando uma alíquota reduzida, de 20%, para esse tipo de operação. A medida depende da sanção de Lula para entrar em vigor. Na semana passada, ele criticou a taxação, mas sinalizou que não a vetaria.
Fim dos Juros sobre Capital Próprio
O ministro da Fazenda queria acabar de vez com o chamado Juro sobre Capital Próprio (JCP), uma modalidade de distribuição de lucro entre acionistas que gera menos impostos para pessoas jurídicas. Após meses de negociação e falta de interesse do Congresso, aceitou apenas restringir o uso do mecanismo.
O JCP é utilizado por muitas empresas como uma alternativa ao pagamento de dividendos. Como os repasses de juros aos investidores são considerados despesas, o valor é descontado do lucro, reduzindo a base de cálculo de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
A extinção do JCP foi proposta em agosto de 2023 no projeto de lei 4.258/2023, que estabelecia 1.º de janeiro de 2024 como marco para o fim do mecanismo. A equipe econômica calculava em R$ 10,4 bilhões o potencial de arrecadação adicional à União com a medida.
Até dezembro, no entanto, o texto nem sequer teve relator definido para sua análise. Foi necessário um acordo entre o governo Lula e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), para que ao menos a limitação no uso do JCP fosse incluída na MP 1.185, a chamada MP das subvenções, para que fosse apreciada pelo Congresso.
Pela versão aprovada, agora podem fazer parte da remuneração que embasa a despesa com JCP somente recursos referentes ao capital social integralizado (transferido para as atividades da empresa), reservas de capital e lucro previstas pela lei das Sociedades por Ações (SAs), além de ações em tesouraria e do montante referente ao lucro registrado.
Deixaram de ser consideradas as variações positivas no patrimônio líquido decorrentes de atos societários entre partes dependentes que não envolvam efetivo ingresso de ativos à pessoa jurídica.
Distribuição de dividendos extraordinários da Petrobras
Outra disputa em que Haddad saiu derrotado ocorreu em março deste ano, quando o Conselho de Administração da Petrobras decidiu, sob influência do governo, reter dividendos extraordinários referentes ao quarto trimestre de 2023. Como sócia majoritária da petrolífera, a União teria direito a até R$ 16 bilhões da distribuição do lucro naquele momento.
O posicionamento dos conselheiros indicados pelo governo contra o repasse dos dividendos atendeu uma demanda dos ministros de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e da Casa Civil, Rui Costa. A justificativa era que a retenção dos valores aumentaria a capacidade de investimento da empresa.
O então presidente da companhia, Jean Paul Prates, era favorável à distribuição de pelo menos 50% dos lucros, e o Ministério da Fazenda também defendia que os dividendos extraordinários fossem pagos. Lula acabou tomando o lado de Silveira e Costa, e o conflito acabou resultando na demissão de Prates meses depois.
“A Fazenda às vezes é provocada a dizer se entende que a distribuição pode prejudicar o plano de investimento da companhia. Agora, o conselho é soberano para pedir informações. É normal isso. [O valor] está numa conta reservada de remuneração de capital, cuja destinação é a distribuição. O ‘quando’ e ‘como’ vão ser julgados à luz das informações”, disse Haddad, na época.
Reoneração da folha de pagamento
Uma das empreitadas mais inglórias de Haddad é a cruzada pelo fim da desoneração da folha de pagamento de 17 setores com mão de obra intensiva. O incentivo fiscal é legado de seu próprio partido, o PT, mas drenou quase R$ 9,4 bilhões dos cofres federais somente no ano passado, segundo a Receita.
Após sofrer modificações e ser prorrogado diversas vezes, o benefício tinha previsão de acabar em 31 de dezembro de 2023. A Gazeta do Povo, empresa de comunicação, é beneficiada com a medida.
Contra a vontade de Haddad, o senador Efraim Filho (União-PB) propôs, por meio do PL 332/2023, estender a duração do benefício por mais quatro anos, até o fim de 2027. No Senado, o senador Ângelo Coronel (PSD-BA) ainda acrescentou um artigo que reduz de 20% para 8% a contribuição previdenciária da folha de pagamentos de municípios com população inferior a 142,6 mil habitantes.
O governo tentou negociar, mas não conseguiu impedir a aprovação do PL por deputados e senadores, selada no dia 25 de outubro do ano passado. A estimativa é que a extensão do benefício para cerca de 3 mil prefeituras custará outros R$ 9 bilhões neste ano.
Contrariado, o ministro aconselhou Lula a vetar integralmente o texto, sob a justificativa de contrariedade ao interesse público e inconstitucionalidade, uma vez que a proposição criaria renúncia de receita sem apresentar demonstrativo de impacto financeiro para os anos seguintes.
No dia 14 de dezembro, no entanto, o veto de Lula foi derrubado por deputados e senadores. O presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), defendeu a decisão. “[A desoneração] é uma política que garante alta empregabilidade. Estamos num cenário de combate ao desemprego. Na minha opinião, considero apropriada a prorrogação da desoneração”, disse.
Haddad não se deu por vencido. Em meio ao recesso parlamentar, no dia 28 de dezembro, o governo publicou a MP 1.202/2023, que estabelece uma reoneração gradativa dos setores e dos municípios que contam com o desconto tributário, além do fim do Perse, em uma atitude vista pela oposição como um desrespeito à decisão do Legislativo.
Diante da insatisfação de parlamentares e de representantes dos setores atingidos pela medida, o governo acabou tornando sem efeito todo o trecho da MP que previa a reoneração de empresas e o fim do Perse (leia mais abaixo) e optou por encaminhar os assuntos por meio de projetos de lei.
Mesmo com as concessões, no entanto, o ministro sofreu novo revés no início de abril, quando Pacheco deixou caducar o trecho da MP que tratava da reoneração da folha de municípios.
Em outra frente de batalha, Haddad conseguiu uma liminar no Supremo Tribunal Federal (STF) para acabar com a desoneração da folha de pagamento tanto dos 17 setores quanto dos municípios beneficiados.
O próprio governo, no entanto, pediu ao STF para suspender a ação após acordo com o Congresso, por meio do qual se tentará um projeto alternativo. A proposta do Ministério da Fazenda, apelidada de “MP do Fim do Mundo”, porém, já foi rejeitada pelo Legislativo (leia mais abaixo).
Fim do Perse
Na mesma MP 1.202/2023, editada em 28 de dezembro de 2023 para reonerar gradativamente a folha de setores e municípios, o governo estabeleceu o fim gradual, até 2025, do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), instituído em 2022 para mitigar os impactos econômicos da pandemia de Covid-19 em empresas do ramo. O texto original previa a vigência da iniciativa até fevereiro de 2027.
Segundo Haddad, além de o Perse ter custado muito mais do que se estimava inicialmente – R$ 17 bilhões em 2023, contra R$ 4 bilhões previstos –, haveria indícios de irregularidades no uso dos benefícios.
O programa zera alíquotas de PIS/Pasep, Cofins, CSLL e IRPJ para o setor e permite a renegociação de dívidas inscritas até 31 de outubro de 2022, com descontos de até 70% e parcelamento em até 145 meses, pouco mais de 12 anos. Autoriza ainda indenização, em valor equivalente à despesa para pagamento de empregados durante a pandemia, para empresas com redução superior a 50% no faturamento entre 2019 e 2020.
A reação negativa dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que ameaçaram derrubar o texto, fez com que Haddad recuasse também na iniciativa e aceitasse encaminhar a extinção gradual do Perse por meio de projeto de lei e em versão “desidratada”.
Encaminhado sob o PL 1.026/2024, a proposta foi aprovada pelo Congresso e sancionada por Lula. Porém, em vez de acabar com o programa até 2025, como pretendia Haddad, a lei prevê sua duração até o dezembro de 2026.
Por outro lado, reserva um limite de R$ 15 bilhões para a desoneração de empresas do setor e reduz de 44 para 30 os tipos de atividades econômicas atendidas.
Mudança na meta de resultado primário de 2025
Consequência dos demais recuos e derrotas em medidas arrecadatórias, a mudança na meta fiscal de 2025 pode ser considerada um dos maiores reveses de Haddad à frente da Fazenda. Em menos de um ano, o alvo inicial, um superávit equivalente a 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB), foi substituído por um resultado neutro.
Para analistas, a alteração apontou para um descompromisso ou, no mínimo, uma dificuldade do Executivo para lidar com as contas públicas. Ciente dessa perspectiva, o ministro da Fazenda resistiu à mudança enquanto pode, mas acabou mais uma vez vencido dentro do próprio governo.
O rebaixamento da meta era defendido por correligionários como o ministro da Casa Civil, Rui Costa, e a presidente do PT, Gleisi Hoffmann. O próprio presidente Lula desdenhou da necessidade de se perseguir o alvo. “Muitas vezes o mercado é ganancioso demais e fica cobrando uma meta que eles sabem que não vai ser cumprida”, disse o mandatário ainda no ano passado.
Conforme a nova proposta, apresentada em abril no projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2025, o atingimento de um superávit de 1% do PIB acabou adiado para 2028, um atraso de dois anos em relação às metas estabelecidas no Orçamento de 2024.
Para os anos de 2026 e 2027, os alvos ficaram em 0,25% e 0,5% do PIB, sempre com uma margem de tolerância de 0,25 ponto porcentual.
Imposto sobre herança de previdência privada
Mais recentemente, a pedido dos estados, o Ministério da Fazenda cogitou regular a cobrança do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) sobre aplicações em planos de previdência privada transmitidos por meio de herança. Depois de repercutir negativamente, a ideia acabou suspensa.
A incidência do tributo estadual constava de uma versão preliminar do segundo projeto de lei complementar (PLP) que regulamenta a reforma tributária, apresentado no início do mês.
O conteúdo foi divulgado por alguns veículos de imprensa que tiveram acesso ao texto prévio, o que gerou reação da oposição. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) foi um dos que criticaram a ideia por meio de suas redes sociais. A crítica ainda foi compartilhada por seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que chamou o atual governo de “organização faminta por seu dinheiro”.
Na versão final do PLP, o trecho acabou retirado. Segundo Bernard Appy, secretário especial para a Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, a decisão foi tomada após uma “avaliação política do governo”.
A intenção da medida era uniformizar nacionalmente a cobrança do ITCMD sobre a transferência de recursos aplicados em planos de previdência privada. Hoje, por serem considerados uma espécie de seguro, planos do tipo VGBL em geral não são taxados quando transferidos.
Já sobre a modalidade PGBL há regras diferentes dependendo do estado, e está sob análise do Supremo Tribunal Federal (STF) uma definição sobre a incidência do tributo nesse tipo de aplicação.
Embora não tenha entrado no PLP da reforma tributária, a proposta não está descartada e pode ser apresentada em outro momento, segundo disseram integrantes da equipe econômica do governo.
Restrição ao uso de créditos de PIS e Cofins
Depois das diversas derrotas na tentativa de acabar com a desoneração da folha de empresas e municípios (leia mais acima), Haddad propôs restringir o uso de créditos de PIS e Cofins como forma de compensar a renúncia com os benefícios tributários. A medida foi imposta por meio da MP 1.227/2024, mas gerou ainda mais insatisfação por parte do Congresso, que apelidou a iniciativa de “MP do Fim do Mundo”.
Créditos de PIS e Cofins são uma espécie de benefício fiscal concedido para estimular setores econômicos e reduzir o efeito cumulativo de impostos. As empresas se utilizam desses créditos para abater outros tributos devidos, como os da Previdência – a chamada “compensação cruzada”, que reduz a arrecadação do governo.
Com a MP, os créditos só poderiam ser usados para abater os próprios PIS e Cofins. O governo esperava, com isso, garantir uma arrecadação adicional de R$ 29,2 bilhões, o que compensaria os R$ 26,3 bilhões estimados para a desoneração da folha de empresas (R$ 15,8 bilhões) e municípios (R$ 10,5 bilhões).
Após pressão de empresários e parlamentares de oposição, apenas uma semana depois de publicada em Diário Oficial, a MP foi devolvida pelo presidente do Congresso, Rodrigo Pacheco. O senador já havia demonstrado insatisfação a Lula e Haddad com o fato de o tema ter sido tratado via medida provisória.
A mais nova derrota de Haddad enfraqueceu o ministro e fez com que Pacheco e líderes partidários assumissem o compromisso de apresentar um pacote com alternativas para a desoneração da folha. As propostas serão reunidas em um projeto de lei do senador Efraim Filho (União Brasil-PB), com Jaques Wagner (PT-BA), líder do governo no Senado, como relator.