O especialista em contas públicas Raul Velloso defende que, se assumir a presidência da República, Michel Temer deve “escancarar” a herança que recebeu de Dilma Rousseff. Seria uma forma de ganhar respaldo da sociedade para implantar as medidas necessárias – e impopulares – para corrigir os rumos da economia. “Esgotaram-se as medidas fáceis”, disse o economista à Gazeta do Povo na última quarta-feira (4), antes de uma palestra a alunos de Direito da UFPR.
Para Velloso, doutor em Economia pela Yale University e um dos mais renomados analistas de finanças públicas do país, o caminho para a saída da recessão começa por “desenferrujar” os canais de exportação da indústria. Ao contrário de alguns colegas, ele sustenta que o buraco das contas públicas deve ser enfrentado sem aumento – nem mesmo temporário – de impostos. O jeito, diz, é primeiro fazer cortes pontuais de gastos e depois encaminhar reformas mais amplas. “O governo vai, no gogó, tentar convencer que num período a relação dívida/PIB vai continuar subindo, mas que mais adiante haverá uma mudança nessa trajetória”, explica.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista:
Qual o primeiro problema econômico que um eventual governo Temer deveria atacar?
Antes de qualquer medida, tem de escancarar a herança que recebeu. Primeiro, para que não seja responsabilizado pelo que não fez. Segundo, para a sociedade ter isso em mente nas decisões futuras de voto. E terceiro, para ela possa avaliar se o novo governo está fazendo as correções que a herança exige.
Por onde ele deve começa a enfrentar essa herança?
O mais urgente é fazer a economia sair da recessão aguda. Ver o que pode ser feito para apressar a recuperação da demanda agregada, para que a economia comece a se recuperar com mais força até o ano que vem.
E como estimular essa demanda?
É preciso ver em que medida a indústria brasileira desaprendeu a exportar. Normalmente as recessões levam a uma depreciação da moeda. O dólar sobe e posteriormente eleva a rentabilidade da indústria, que pode aumentar as exportações e substituir importações. Esse é o caminho natural de saída das recessões em países como o Brasil. E a moeda se depreciou de 2015 para cá, mas a resposta da indústria está sendo muito lenta porque há muitos ruídos. Temos muitos anos de perda de participação da indústria no PIB, e nesse período os canais de exportação enferrujaram. É preciso desenferrujá-los.
E qual seria o papel do governo nisso?
Cabe a ele fazer o diagnóstico. Pode ser que perceba que há onde agir, ou mesmo que deve retirar suas ações.
E a demanda doméstica?
Estimular a demanda doméstica não terá efeito. Na situação em que estamos, qualquer coisa nesse sentido será feita à custa do Orçamento público, que já está quebrado. Esgotaram-se as medidas fáceis.
A questão fiscal é uma prioridade?
Só com o ataque ao problema fiscal vamos melhorar as perspectivas de investimento, que estão travadas por medo do crescimento da dívida pública, pelo temor de que o Brasil perca o rumo. O novo governo precisa demonstrar que a dívida poderá, num certo espaço de tempo, voltar ao controle.
A expectativa de déficit primário para este ano passa de R$ 100 bilhões. Como transformar isso em superávit em alguns anos?
O principal problema conjuntural é a própria recessão, que derrubou a arrecadação. Então há uma parte que se resolverá quando a recessão acabar. Enquanto isso não ocorre, o governo precisa examinar, item a item, o que pode reduzir de gastos ao menor custo possível para a sociedade, para o funcionamento dos serviços públicos. Fora isso, tem de apresentar um ambicioso programa de reformas, que vão permitir ajustes mais profundos no médio e longo prazos. Mesmo que isso não permita fazer o superávit aumentar rapidamente, a informação e o cálculo do tempo para essa recuperação serão, a meu ver, suficientes para que o país volte a operar normalmente. O governo vai, no gogó, tentar convencer que num período a relação dívida/PIB vai continuar subindo, mas que mais adiante haverá uma mudança nessa trajetória. Se o país não tivesse um volume elevado de dólares no caixa, talvez essa escolha não existisse e tivéssemos que aumentar a carga tributária, como no passado.
Há quem defenda um aumento temporário da carga de tributos, com a volta da CPMF, por exemplo.
Eu não defendo nenhum aumento de carga tributária. Acho que a sociedade não vai aceitar, ainda que alguns analistas possam dizer que talvez não haja escolha.
Temer terá apoio político para fazer os ajustes e as reformas?
Quando eu olho aquela cerimônia de votação da Câmara, em que as pessoas fizeram aquelas colocações dramáticas, muito criticadas, vejo ali uma mobilização da classe política, reagindo a um desejo da sociedade, de fazer o que é preciso para resolver os problemas. Se ele não demorar muito e não deixar aquilo se dissipar, poderá dizer: “Escute, você estava ali, fazendo o impeachment da presidente, para mudar a loucura que estava ali. Eu mostrei o tamanho da loucura. Agora vamos consertar”.
Ao mostrar o tamanho da “loucura” ele pode suavizar a pressão popular contra medidas de ajuste?
Sim. Ele dirá: “Olhe o que eu herdei. Eu entrei para corrigir”.
Além de estimular exportações e enfrentar a questão fiscal, o que o novo governo deverá fazer?
Remover as interferências indevidas que o governo fez ao longo desses anos todos, que inibiram investimento e produção. Só para dar um exemplo: energia elétrica. O governo reduziu o preço na hora errada e os investimentos encolheram. E estamos falando só do curto prazo, de sair da recessão.
O que vem depois?
O crescimento potencial da economia [o quanto o país pode crescer sem gerar inflação] está em algo entre 0% e 2%. Quer dizer, se nós conseguirmos sair dessa queda de quase 4%, a gente vai para algo entre 0% e 2%. Isso é bom? Não. Teremos que pensar em mudar o modelo que estava operando, que era voltado só para o consumo e se esgotou. Temos de voltá-lo para o investimento. Não será trivial.