A despeito da pandemia da Covid-19 e dos velhos problemas fiscais, os estados brasileiros tiveram um 2020 surpreendentemente bom. Impulsionados por repasses emergenciais do governo federal, 24 de 27 entes subnacionais conseguiram superar a arrecadação estimada para o período. O auxílio financeiro foi tão bom que 20 desses estados puderam ampliar o volume de investimentos na comparação com o ano passado.
O problema é que um cenário de incertezas se desenha no horizonte. A pandemia, que parecia arrefecida, voltou a ganhar força e não há como prever o tipo de medida que será usada para mitigar seus efeitos. Novas interrupções de atividades, embora possam ser necessárias do ponto de vista sanitário, vão enfraquecer ainda mais a retomada da atividade econômica, também ameaçada pelo fim iminente do auxílio emergencial. A União, que avançou muito no gasto público e no endividamento neste ano, enfrenta problemas na discussão de temas orçamentários no Congresso e pode não ter fôlego para manter tantas medidas de socorro em 2021.
E, passada a bonança deste ano, com a forte injeção de recursos apesar da queda na arrecadação da impostos, os estados voltam ao cenário de tempestade: os velhos problemas de excesso de gastos com pessoal, Previdência e falta de liquidez voltarão a exigir atenção dos governantes. Essas questões, que ficaram fora do radar no ano da pandemia, serão retomadas e exigirão soluções.
Socorro da União mais que compensou as perdas de arrecadação
Boa parte da folga no caixa dos estados em 2020 pode ser atribuída ao socorro da União. Conforme explica o diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI) e consultor legislativo do Senado Josué Pellegrini, o governo fez dois tipos de transferências financeiras aos estados. A primeira compensou redução dos recursos destinados ao Fundo de Participação dos Estados (FPE), e consistiu em repasse de R$ 7,4 bilhões, em sete parcelas, e na medida exata para compensar a perda na comparação com o ano anterior.
A outra transferência foi mais volumosa e permitiu o repasse de R$ 37 bilhões, em quatro parcelas, dos quais R$ 7 bilhões tiveram uso vinculado à saúde e assistência social. Esse auxílio, que foi pensado para compensar a perda de arrecadação tributária, foi mais que o suficiente para a grande maioria das unidades da federação. Nota técnica de Pellegrini, publicada em 19 de novembro, mostra que esse socorro serviu para que 24 de 27 estados conseguissem superar a expectativa de arrecadação com o auxílio.
O consultor destaca que a diferença principal entre os dois auxílios foi a opção de seguro-receita – quando se verifica o que foi perdido e se compensa apenas isso. Para ele, o quadro inicial parecia muito grave e houve um receio, por parte da União, de desembolsar ainda mais dinheiro.
“O desempenho arrecadatório dos estados foi melhor do que o esperado, mas as parcelas [do socorro de R$ 37 bilhões] já estavam fixadas. A receita não caiu como esperado e o auxílio acabou ficando maior do que a perda”, explica. Pellegrini também destaca outras medidas, como o pagamento do auxílio emergencial, que teve impacto importante sobre o comércio, que por sua vez é base arrecadatória do ICMS, principal tributo estadual.
Essa injeção de recursos acabou se refletindo no resultado primário (a diferença entre receitas primárias e despesas primárias), indicador que mostra se os níveis de gastos do setor público são compatíveis com a arrecadação.
Das 27 unidades da federação, 20 melhoraram o resultado primário na comparação entre os oito primeiros meses de 2019 e 2020, segundo dados do Tesouro Nacional.
“Não vamos nos iludir: essa é uma melhor circunstancial. É bom que os estados aproveitem, ainda mais se tiver risco de a pandemia recrudescer, é bom que tenham esses recursos, porque vai ser difícil que ocorra uma transferência da forma como foi feita esse ano”, avalia Pellegrini. Para ele, no afogadilho da crise sanitária, acabou havendo um excesso de transferências e o governo federal não deverá repetir esse tipo de “erro” de cálculo.
Estados conseguiram espaço até para aumentar investimentos
Com mais receitas, os estados conseguiram até ampliar os investimentos em relação a 2019. O que contraria o esperado no setor público: cada vez mais sufocados por despesas obrigatórias, União, estados e municípios costumam ter pouca sobra de dinheiro para aplicar em obras, máquinas e equipamentos.
Segundo dados de janeiro a agosto compilados pelo Tesouro Nacional, 20 estados conseguiram ampliar os investimentos. Em cinco deles estados – Tocantins, Minas Gerais, Pará, Goiás e Acre –, o valor aplicado mais que dobrou em relação ao mesmo período do ano passado.
Ano novo, velhos problemas para os estados
O economista e especialista em contas públicas Raul Velloso recomenda separar o que é conjuntural do que é estrutural. “A conjuntural é a pandemia e o impacto dela. As medidas de ajuda para combatê-la é que vão predominar, enquanto isso estiver como está. Acabou a pandemia, voltam os problemas antigos, que são estruturais”, diz.
Na opinião de Velloso, ainda não está claro como será a saída desse período marcado por muito socorro da União, mas é certo que ela terá efeitos sobre a arrecadação e o crescimento (ou não) da atividade econômica. O auxílio emergencial teve impacto muito forte sobre a arrecadação do Norte e Nordeste, por exemplo.
Sem isso, voltam velhos problemas e, para ele, o principal é a Previdência. Velloso diz que esse será o momento de fazer as contas de quanto estarão custando a Previdência e as despesas tradicionais (com ênfase em saúde e educação), e qual será o espaço para investimentos. Saúde e educação são áreas críticas, que foram afetadas fortemente pela pandemia e contam com amarração de gastos em relação às receitas. “O que vai ser decisivo é o conflito em investir [em infraestrutura] ou pagar o déficit previdenciário”, diz.
Velloso observa que, exceção feita a este ano atípico, o espaço para investimentos por parte dos estados vem se reduzindo bastante, e há muito tempo. “Sabemos que dá para viver sem investir muito, mas viver investindo zero é outra história”, alerta.
O economista conta que fez cálculos que apontam que São Paulo, por exemplo, pode zerar o espaço para investimentos em 2023 – e é um dos entes que tem a situação mais tranquila. “A maioria dos estados, e certamente aqueles tradicionais “semiquebrados”, como Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Goiás, eles seguramente não duram um ano para zerar espaço para investir. Estamos numa encruzilhada nessa área”, diz.
Josué Pellegrini, da IFI, concorda. Para ele, o principal “velho problema” é pelo lado das despesas, notadamente pessoal e Previdência. “Os diagnósticos e as soluções têm que se voltar para esses problemas, dar elementos para que União e estados controlem a dinâmica de despesas obrigatórias e possam equilibrar contas e organizar investimentos”, afirma.
Segundo ele, a série de planos de ajuda aos estados que vem sendo adotados nos últimos anos – com foco em recuperação fiscal, renegociação e até suspensão de pagamentos de dívida – representam alívio, mas não resolvem os problemas. “Esses planos de ajuda acabam mais acomodando, numa situação que já não é de equilíbrio, do que sendo uma solução. Os problemas requerem outros tipos de solução, como reformas fiscal, da Previdência e administrativa”, diz.
Para 2021, governadores já pedem que o Congresso aprove a mais recente versão do que um dia foi o Plano Mansueto, o PLP 101/2020, que cria o Programa de Acompanhamento e Transparência Fiscal e o Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal, além de promover outras alterações. Um estudo da consultoria legislativa do Congresso já alertou que esse novo pacote de socorro pode apenas postergar a crise fiscal, porque flexibiliza regras vigentes.
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