Em meio a incertezas sobre o aumento da arrecadação e a perspectiva de crescimento de despesas do governo, é consenso entre analistas do mercado financeiro e congressistas de que a meta de déficit zero, prevista pelo arcabouço fiscal para 2024, não será atingida.
A expectativa é de que logo na primeira revisão bimestral de receitas e despesas do ano que vem fique clara a impossibilidade de cumprir a regra. Assim, além de precisar contingenciar despesas em ano eleitoral, o governo pode se ver obrigado a alterar a meta fiscal.
O mercado há tempos duvida do cumprimento da meta. No começo do ano, antes mesmo da apresentação e aprovação do arcabouço, esperava-se um déficit equivalente a 1% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2024, conforme a mediana das projeções coletadas pelo Banco Central.
A expectativa melhorou suavemente desde então, mas segue ruim: a projeção de déficit tem oscilado entre 0,7% e 0,8% do PIB. Mas algumas consultorias, como a Galápagos Capital, ainda apostam num rombo ainda maior, de 1% do PIB – o mesmo previsto para este ano.
A hipótese de revisão da meta já foi aventada por aliados do Planalto. Na prática, seria como mudar as regras no meio do jogo, logo no primeiro ano de mandato, admitindo ao mercado que o governo não vai conseguir honrar suas contas.
"Mesmo sendo uma péssima sinalização, a alteração da meta é uma possibilidade real", afirma Murilo Viana, especialista em contas públicas e consultor sênior da GO Associados.
Tempo do governo é curto e custo político, alto, avalia especialista
Viana avalia que o cronograma do governo está "super apertado" para aprovar no Congresso Nacional os projetos de lei que permitam aumento de receita. "São várias as frentes de batalha que o ministro da Fazenda terá de enfrentar até o fim do ano", diz.
Alguns temas caminharam graças às negociações do ministro Fernando Haddad com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). O governo também promoveu uma minirreforma e cedeu espaço de poder nos ministérios ao Centrão para ajudar na leva de projetos a serem votados. "Mas ainda há uma ampla e complexa reforma tributária que certamente será modificada no Senado e precisará retornar à Câmara", lembra Viana.
Paralelamente, a cada dia surgem novos problemas e a agenda do Congresso é atropelada por pautas não econômicas, que, segundo Viana, desviam o foco de medidas relevantes para o equilíbrio fiscal.
Um bom exemplo é a obstrução das votações que vem sendo promovida por frentes parlamentares, em reação às interferências do Supremo Tribunal Federal (STF) no Legislativo. "O tempo é curto e o capital político do governo está diminuindo", acredita o consultor.
Aumentar a arrecadação é desafio repleto de incertezas
O cenário desafiador para as contas públicas foi traçado pelo próprio governo quando decidiu aumentar os gastos públicos em 2% do PIB, com a PEC fura-teto (oficialmente chamada de PEC da Transição), e apostar unicamente no aumento de arrecadação para equilibrar as despesas.
Com o arcabouço fiscal, anunciado em março, o governo se comprometeu a zerar o déficit em 2024 – ou seja, fazer com que o governo consiga gastar (sem contar os juros da dívida) o equivalente ao que arrecada.
Dos R$ 168 bilhões necessários para zerar o déficit em 2024, o governo calcula que algo próximo a R$ 50 bilhões venham por meio das disputas tributárias do Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf).
O governo conseguiu aprovar o retorno do voto de qualidade, que desempata os litígios a favor do Fisco. A expectativa é de que outros R$ 48 bilhões de processos dos anos anteriores sejam acrescentados. Os outros R$ 70 bilhões necessários devem vir, nas contas do ministro Haddad, de medidas que dependem dos congressistas.
Para o consultor da GO, além da incerteza sobre a aprovação dos projetos do Executivo, as previsões de arrecadação estão superavaliadas. "Ninguém sabe precisar o quanto será arrecadado. O governo está aumentando a base de arrecadação com medidas e setores novos e não há garantias de como será o comportamento do contribuinte", ressalta Viana.
Parlamentares não acreditam em aumento de arrecadação
O deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) avalia que dificilmente o governo vai conseguir arrecadar o que espera. Pesquisa divulgada pelo Ranking dos Políticos mostrou que 72% dos deputados e dois terços dos senadores não acreditam que o governo Lula conseguirá alcançar a meta de déficit zero.
Na avaliação do deputado, o governo vai conseguir aumentar a base de arrecadação em alguns setores não tributados, como de jogos e apostas eletrônicas. Mas não conseguirá manter as alíquotas propostas em projetos visando contribuintes mais ricos, como a taxação das aplicações no exterior (offshores) e dos fundos fechados.
Uma amostra da dificuldade foi comprovada com a redução da tributação proposta sobre os ganhos acumulados por detentores de fundos em paraísos fiscais (offshores) e de fundos fechados de investimento no Brasil, anunciada na quarta-feira (4) pelo relator da proposta, Pedro Paulo (PSD-RJ). A alíquota caiu dos 10% planejados pela Fazenda para 6%. O corte foi negociado com o ministro Haddad para vencer resistências e abrir caminho ao avanço das medidas.
Com as offshores, a previsão é arrecadar R$ 7 bilhões por ano e com os fundos fechados, R$ 10 bilhões. Na fila da Fazenda ainda há um projeto de taxação dos Juros sobre Capital Próprio (JCP). Luiz Philippe descreve as projeções de arrecadação do governo como "altamente fictícias".
O deputado cita também uma ambição da esquerda que, ao menos oficialmente, não foi encampada pelo ministro Haddad: a criação de um Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF). Em 2021, deputados petistas protocolaram um projeto de lei complementar para instituir o tributo, o PLP 130/2021.
Organizações sociais e sindicatos que compõem a campanha Tributar os Super-Ricos estimam que o IGF poderia arrecadar R$ 40 bilhões por ano a partir de alíquotas progressivas variando de 0,5%, para patrimônios de R$ 10 milhões, a 1,5%, para os que superarem R$ 80 milhões.
Levando em conta os interesses do próprios congressistas, a previsão é de que essa taxação não passe na Câmara. "Se passar, a arrecadação será baixa e apenas num primeiro momento. Não haverá segundo momento, porque o capital fugirá do país, como já aconteceu em países como a França, que aprovaram a medida e depois voltaram atrás", diz o deputado.
A maioria dos projetos, para ele, tem caráter revanchista e estatizante. "A lógica do governo é tributar qualquer capital que esteja circulando na atividade econômica. O objetivo é sempre o de arrecadar e controlar. Dinheiro livre é crime. Viu dinheiro, vai lá e taxa em nome de promover justiça social, este é o mantra", afirma.
No entendimento do deputado Gilson Marques (Novo-SC), que também não acredita em aumento expressivo da arrecadação, o problema maior é que as despesas contratadas pelo governo já são maiores e inviabilizarão o ajuste fiscal. "Este é um governo que só quer gastar e arrecadar. Ele não vai zerar o déficit, vai botar a culpa em alguém. E vai continuar gastando."
Despesas subestimadas e pautas-bomba agravam as contas
Do lado das despesas, o governo promoveu medidas que vão ter grande impacto nas contas públicas, entre elas o aumento de programas de transferência de renda. A principal, no entanto, foi a concessão de reajuste real (acima da inflação) para o salário mínimo, que baliza as contribuições previdenciárias e o Benefício de Prestação Continuada, BPC.
No orçamento apresentado no fim de agosto, o governo projetou as despesas com a Previdência, em R$ 913,9 bilhões. Mas a Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado, calcula que o gasto, na verdade, deve ficar em R$ 932,4 bilhões, uma diferença de R$ 18,5 bilhões.
Ao mesmo tempo, o Congresso tem aprovado mais pautas que, na prática, significam mais gastos. Parlamentares querem prorrogar a desoneração da folha de pagamento de 17 setores, a um custo de R$ 9,4 bilhões, e estendê-la para prefeituras, o que deve custar entre R$ 7 bilhões a R$ 9 bilhões para os cofres públicos. Há ainda uma fila de projetos considerados "pautas-bomba".
A conta não vai fechar, avalia Luiz Philippe. "O resultado vai ser imprimir dinheiro. Com isso o juro vai permanecer alto e o investimento e emprego baixo", diz.
Reforma administrativa pode entrar em pauta
Pressionado pela realidade das contas públicas, Luiz Philippe acredita que, mais cedo ou mais tarde, o governo terá de olhar para o corte de gastos: "O governo sabe disso, só não pode assumir publicamente".
Para não voltar atrás na narrativa de defesa do funcionalismo público, o deputado acredita que o o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode sinalizar para Arthur Lira seguir em frente com a proposta de reforma administrativa.
Lira já levantou a possibilidade de tirar da gaveta da Casa a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020, apresentada pelo ex-ministro da Economia Paulo Guedes, que trata da reforma. Relatada pelo deputado Arthur Maia (União -BA), a proposta já foi aprovada em comissão especial.
Na ocasião, a iniciativa de Lira era vista como recado ao governo, dentro da estratégia de ampliação de espaço de poder. "Agora, eles podem usar como argumento que a oposição e o Centrão, "os reacionários", conseguiram aprovar a reforma. E sair politicamente preservados", prevê Luiz Philippe.
Tudo isso deve pesar na balança eleitoral do ano que vem. Mesmo com a estratégia favorável ao governo, o resultado seria benéfico ao pais. "Neste momento de união das frentes parlamentares da Casa, há grandes chances de a reforma ir adiante", acredita o deputado.
Moraes retira sigilo de inquérito que indiciou Bolsonaro e mais 36
Juristas dizem ao STF que mudança no Marco Civil da Internet deveria partir do Congresso
Quebra de sigilo de relatório da PF coloca Bolsonaro à beira do abismo; acompanhe o Sem Rodeios
Boicote do Carrefour gera reação do Congresso e frustra expectativas para acordo Mercosul-UE
Reforma tributária promete simplificar impostos, mas Congresso tem nós a desatar
Índia cresce mais que a China: será a nova locomotiva do mundo?
Lula quer resgatar velha Petrobras para tocar projetos de interesse do governo
O que esperar do futuro da Petrobras nas mãos da nova presidente; ouça o podcast