Um estudo elaborado pela Consultoria Legislativa do Senado no ano passado alertou os congressistas – e o governo – sobre o risco de crescimento do endividamento das famílias de baixa renda com as apostas online, as chamadas “bets” que entraram na mira do Planalto após ser revelado que beneficiários do Bolsa Família estavam gastando o benefício nas plataformas.
O estudo foi publicado em março, meses antes do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) editar uma medida provisória (MP) em julho para iniciar a regulamentação do setor. A atividade de apostas é permitida no Brasil desde 2018, mas sem regras claras ou fiscalização efetiva.
O estudo do Senado, a que a Folha de S. Paulo teve acesso e publicou trechos nesta terça (8), foi conduzido por quatro consultores de carreira e baseado em pesquisas internacionais. O Ministério da Fazenda foi procurado pela Gazeta do Povo e afirmou que "está desenvolvendo ainda campanhas educativas voltadas aos apostadores, para que eles vejam a atividade de apostas como lazer, que deve ser praticada de forma saudável, visando reduzir o endividamento e o surgimento de patologias relacionadas ao jogo, para aliviar a carga sobre os serviços de saúde".
De acordo com os consultores legislativos, o levantamento identificou dois grandes problemas: o impacto nas finanças das famílias, especialmente as de baixa renda, e os efeitos negativos nas demais atividades econômicas.
Um dos pontos mais críticos do relatório era a falta de conhecimento sobre o “efeito da difusão do mercado de apostas esportivas sobre o orçamento familiar, a capacidade de poupar e o endividamento”, com foco em famílias de baixa renda.
Recentemente, uma nota técnica do Banco Central confirmou esses temores, revelando que beneficiários do programa Bolsa Família destinaram cerca de R$ 3 bilhões às apostas em agosto. Outro estudo encomendado pelo próprio setor de apostas, no entanto, estimou o gasto em R$ 210 milhões.
A pesquisa da FecomercioSP também trouxe dados preocupantes, indicando que 20% dos usuários de sites de apostas substituíram o pagamento de contas pelo jogo, enquanto 12% optaram por apostar em vez de comprar alimentos. O estudo do Senado havia previsto que a expansão das apostas online poderia gerar “efeitos negativos sobre outras atividades econômicas”, previsão agora confirmada.
As apostas foram liberadas no Brasil em 2018 durante o governo de Michel Temer (MDB) a partir de uma medida provisória, que deveria ser regulamentada pela presidência de Jair Bolsonaro (PL). No entanto, não avançou e foi deixada para a gestão de Lula. As portarias do Ministério da Fazenda estabelecem que a legalização completa do setor ocorrerá a partir de janeiro de 2025.
"Em 2024, o Ministério [da Fazenda] criou a Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA-MF), que publicou mais de dez portarias temáticas para que o setor funcione de forma regulada e controlada, de forma que proteja o apostador e a economia popular, após analisar diversos estudos e pesquisas nacionais e internacionais", disse a pasta em nota à Gazeta do Povo sem explicar se levou o estudo do Senado em consideração.
O levantamento ainda aponta impactos econômicos das apostas observados em outros países, como Uganda e Austrália. Em Kampala, capital do país africano, um levantamento de 2015 mostrou que 40,9% dos apostadores utilizavam dinheiro que deveria ser destinado a contas domésticas, sendo os mais pobres os mais prejudicados.
Outro exemplo foi o estado de Victoria, na Austrália, onde o governo arrecadou 1,6 bilhão de dólares australianos em impostos sobre jogos online no biênio 2014/2015. No entanto, o custo social ultrapassou os 7 bilhões de dólares australianos, destacando o desequilíbrio entre receita e danos sociais.
A Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) levou ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação para tentar derrubar a Lei das Bets, argumentando que a legislação aumentou o endividamento das famílias brasileiras. A CNC estima que as apostas esportivas possam gerar um prejuízo anual de R$ 117 bilhões ao comércio.
Outro ponto destacado no estudo do Senado foi o aumento do risco de ludopatia (vício em jogos), apontando a facilidade com que os usuários podem apostar em um ambiente com poucas barreiras. Enquanto o governo tenta criar uma regulamentação equilibrada, funcionários do Ministério da Fazenda se reuniram 251 vezes com representantes do setor de apostas, mas apenas cinco vezes com profissionais de saúde, conforme revelou a Folha.
A Fazenda afirmou que, em coordenação com o Ministério da Saúde, desenvolve políticas para atendimento de pessoas com transtornos relacionados ao jogo e planeja lançar campanhas educativas. E que, a partir do próximo ano, as marcas autorizadas deverão operar sob o domínio ".bet.br", quando o mercado regulado entrará em vigor.
"As medidas de atendimento a pessoas com problemas de saúde associados à atividade de apostas estão sendo coordenadas com o Ministério da Saúde (MS), que detém o conhecimento técnico sobre o assunto e é o órgão competente para as políticas relativas ao Sistema Único de Saúde (SUS)", pontuou.
Com a crescente pressão sobre o setor, as próprias empresas de apostas começaram a adotar medidas para tentar conter os danos. Na semana passada, a Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL) anunciou que suas afiliadas não aceitarão mais pagamentos com cartões de crédito, decisão que também foi seguida pelas principais bandeiras de cartões no país.
No entanto, segundo as próprias operadoras de apostas, essa mudança terá pouco impacto prático, já que os usuários costumam utilizar outros métodos de pagamento.
Entre outras considerações, o Ministério da Fazenda afirmou que:
- Publicou mais de dez portarias temáticas para que o setor funcione de forma regulada e controlada, de forma que "proteja o apostador e a economia popular, após analisar diversos estudos e pesquisas nacionais e internacionais";
- A portaria 1.231 estabeleceu as regras que os agentes operadores de apostas deverão cumprir em relação ao jogo responsável, como a divulgação de informações aos apostadores, a identificação de seus perfis e o monitoramento de seu comportamento, com o objetivo de antecipar a prevenção de problemas relacionados ao jogo patológico;
- Impôs restrições à publicidade, proibindo, por exemplo, a divulgação de propagandas enganosas, que passem a ideia, entre outras, de que apostar pode ser considerado uma forma de complementação de renda ou de enriquecimento;
- Determinou que as empresas de apostas criem sua política de Jogo Responsável, cumprindo os requisitos mínimos estabelecidos, como, por exemplo, a oferta de autolimitação ao apostador, critérios para limitar o tempo e o volume de dinheiro gastos em apostas, além de gerar alertas, impor períodos obrigatórios de pausa e, em casos mais críticos, implementar bloqueios.
As medidas, diz o ministério. deverão ser submetidas à avaliação e ao monitoramento da SPA-MF.
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