A indefinição do governo e do Congresso sobre o Orçamento de 2021 pode afetar muito mais do que a execução das contas públicas no ano que vem. Além do risco de paralisia da máquina pública, o país acaba alimentando ainda mais as incertezas fiscais em curto prazo, o que gera turbulências no mercado e dificulta a gestão da dívida pública, podendo até resultar em um rebaixamento do Brasil na avaliação das agências de classificação de risco.
Essa é a opinião de especialistas em contas públicas consultados pela Gazeta do Povo e do próprio vice-presidente da República, Hamilton Mourão. Em evento recente promovido pelo Itaú Unibanco, o general reconheceu que o Orçamento não será votado neste ano e que, provavelmente, ficará para abril do ano que vem, o que pode levar a um corte da nota de crédito do Brasil.
“O Congresso, até agora, não conseguiu se reunir e colocar em pé a Comissão Mista de Orçamento. Tudo indica que nós não vamos votar o Orçamento neste ano, o que será um problema, o que provavelmente vai levar [a] uma queda em nossa avaliação pelas agências de rating”, disse Mourão. As agências de classificação de risco atribuem aos países notas de crédito soberano, que indicam maior ou menor risco de se investir no país.
Atualmente, as notas atribuídas ao Brasil pelas três principais agências são ruins e o país não conta com o selo de "bom pagador". A Fitch e a Standard & Pool’s classificam o Brasil como “BB-” e a Moodys, “Ba2”, classificações que estão abaixo do chamado grau de investimento, que o país ostentou entre 2008 e 2015.
Nos dois primeiros casos, o Brasil precisa subir três níveis para atingir grau de investimento de qualidade média e seis para qualidade elevada. No caso da Moodys, são dois e cinco degraus, respectivamente.
A Fitch, inclusive, reforçou na última quarta-feira (18) a nota de crédito soberano "BB-" para o Brasil, com perspectiva negativa, devido aos riscos fiscais. "A perspectiva negativa reflete a severa deterioração do déficit fiscal do Brasil e do fardo da dívida pública durante 2020 e a incerteza persistente quanto às perspectivas de consolidação fiscal, incluindo a sustentabilidade do teto de gastos de 2016, dadas as contínuas pressões sobre os gastos", afirmou a agência em relatório.
Segundo a agência, além da possibilidade de uma segunda onda de Covid-19, o ambiente político segue obscurecendo o panorama do país para o ano que vem. “Embora a equipe econômica esteja comprometida em retornar à sua agenda de reformas em 2021, o ambiente político permanece fluído, reduzindo a visibilidade e previsibilidade do processo", disse a Fitch no texto.
Orçamento aprovado reduziria incertezas sobre teto e ajuste fiscal
Com o Orçamento aprovado, o governo conseguiria reduzir as incertezas sobre a manutenção ou não, em 2021, da agenda de ajuste fiscal e do teto de gastos, mecanismo que limita o crescimento das despesas dos três Poderes à inflação.
"Todos hoje têm certa incerteza sobre se o governo Bolsonaro vai caminhar na trilha da responsabilidade fiscal ou se vai sair pra medidas populistas. O Orçamento pelo menos daria um norte”, relata Gil Castello Branco, fundador da ONG Contas Abertas, que fiscaliza gastos públicos.
“O Orçamento de 2021, proposta entregue pelo Executivo ao Congresso em 31 de agosto, não tem absolutamente nada de Renda Brasil, Pró-Brasil. Tem apenas o Bolsa Família. Apesar disso, o governo continua falando nesse programa social mais amplo. Esses recursos sairiam de onde? É isso o que gera uma certa inquietação [no mercado]", explica o economista.
"Essa dúvida é que acaba gerando turbulência grande, que acaba se refletindo na inflação, nos juros futuros, que inclusive têm aumentado, dificultando até a rolagem da dívida do governo”, completa o especialista.
Para ele, enquanto não houver a convicção de que o Brasil vai seguir o caminho da responsabilidade fiscal, essas turbulências no mercado vão continuar acontecendo, o que pode até afetar a classificação brasileira nas agências de risco, como alertou o vice-presidente.
Vários problemas para resolver no Orçamento
Consultor econômico sênior na Tendências Consultoria, Fabio Klein avalia que o governo e o Congresso estão “empurrando com a barriga” a resolução de vários problemas que estarão impostos quando forem se debruçar sobre a análise do Orçamento.
“O Orçamento foi enviado [pelo governo] prevendo o fim da desoneração da folha. O Congresso a manteve para 2021. Vai ter de cortar despesa discricionária [investimento ou custeio da máquina]. Tem também a questão inflacionária. O limite de despesas, que é estabelecido pelo teto, foi feito considerando uma inflação de 2,1%. A gente já sabe que [a inflação] vai ficar acima de 3%. Há despesas, como o salário mínimo, que são indexadas à inflação. Isso vai pressionar o teto [e outras despesas terão de ser cortadas]”, explica Klein.
O consultor afirma, ainda, que o governo e o Congresso precisam sinalizar qual será a saída para o teto de gastos em 2021. Ele diz que a solução ideal seria aprovar a PEC Emergencial junto com o Orçamento. A proposta permite a redução imediata de despesas obrigatórias. A pior solução seria furar o teto para acomodar novas despesas ou recorrer à “contabilidade criativa”.
As chances de o Congresso votar ainda em 2020 o Orçamento são muito baixas. A tendência é que a proposta seja votada em janeiro, se o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), conseguir emplacar sua ideia de suspender o recesso legislativo. Provavelmente, a votação ficará para março, após o retorno do Congresso e a eleição para a mesa diretora das duas Casas.
O vice-presidente Mourão acredita que o Orçamento de 2021 entrará em vigor somente em abril. “E nós vamos ter o Orçamento só para abril do ano que vem. Vamos ficar três, quatro meses só podendo gastar 1/18 [na verdade, um doze avos, se aprovar a LDO] daquilo que está previsto, planejado para o Orçamento”, disse em live promovida pelo Itaú Unibanco.
Peça orçamentária prévia precisa ser aprovada em 2020
Caso a peça orçamentária prévia – a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) – seja aprovada e sancionada até 31 de dezembro, parte das incertezas pelo menos diminui, afirmam Castello Branco e Klein.
A LDO estabelece regras básicas para a execução do Orçamento do ano seguinte e previsões de receitas e despesas e desempenho para as contas públicas no curto e médio prazo. Ela precisa ser aprovada antes da Lei de Diretrizes Orçamentária (LOA), que é o Orçamento em si, com as despesas pormenorizadas.
“Entraremos no ano de 2021 sem o Orçamento, mas pelo menos com essa lei estabelecida [a LDO], que que estabelece as regras para o gasto do recurso público mesmo sem a aprovação do Orçamento”, afirma Castello Branco.
“A LDO coloca um quadro de curto e médio prazo para as contas públicas. Sem ela, alimenta ainda mais as incertezas fiscais no curto prazo. Ficamos sem diretriz, sem norte. É como estamos agora, estamos no escuro em relação a essa diretriz”, completa Klein.
A LDO, que precisa ser aprovada pelo Congresso todo ano, tem um artigo que prevê que, enquanto o Orçamento não for aprovado, algumas despesas públicas podem ser executadas. A principal regra é a permissão para pagar despesas obrigatórias constitucionais ou legais da União e gastar um doze avos por mês do valor previsto para o custeio da máquina pública no Orçamento do ano anterior.
O objetivo é evitar a paralisia da máquina pública. Caso a LDO não seja aprovada neste ano, o governo não tem respaldo legal para pagar nenhuma despesa no ano que vem. Isso nunca aconteceu desde a Constituição de 1998, o que jogaria o país numa situação inédita, sem nenhum precedente jurídico para solução.
Castello Branco avalia que esse cenário é uma afronta à própria Carta Magna. “A Constituição diz que os parlamentares nem poderiam ter saído em recesso no meio do ano se não tivesse sido aprovada a Lei de Diretrizes Orçamentárias. Então veja como nós afrontamos a Constituição no que diz respeito à LDO.”
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