A estreia prevista para novembro do Pix, o sistema de pagamentos instantâneos do Banco Central, e a tentativa de entrada do WhatsApp Pay no mercado brasileiros são esperados como o marco da nova era dos pagamentos eletrônicos. As duas soluções, apesar de suas diferenças, são consideradas passos decisivos rumo à chamada sociedade “cashless”, em que todas as transferências são feitas com moeda digital e de forma imediata.
Os pagamentos eletrônicos existem há décadas no Brasil - exemplos são TEDs e DOCs. A novidade é que os pagamentos instantâneos são uma versão turbinada dessa modalidade porque ocorrem em questões de segundos, 24 horas por dias, sete dias na semana. E de forma mais fácil. Caso o WhatsApp Pay seja autorizado pelo Banco Central, em breve, transferências de dinheiro poderão ser feitas pelo chat, da mesma forma como enviamos uma mensagem a um amigo.
Nos últimos anos, aplicativos de pagamentos digitais têm se popularizado. Um dos mais usados no Brasil é o Picpay, que tem cerca de 20 milhões de usuários. O app funciona como carteira virtual (e-wallet), conta simplificada, possibilita pagamentos via QR Code nos estabelecimentos conveniados e transferências entre pessoas. Para fidelizar os clientes, oferece o chamado "cashback", ou seja descontos ou “dinheiro de volta”.
Mas isso é só um aperitivo do que está por vir com o Pix. A plataforma do Banco Central vai integrar todos os atores do mercado financeiro: quase mil empresas entre bancos tradicionais e digitais, fintechs e operadoras de cartões já se cadastraram para poder operar no sistema. Por meio do Pix será possível fazer transferências entre pessoas físicas e jurídicas, pagar contas e até recolher impostos. Tudo a um custo muito baixo, numa interface que promete ser simples e moderna.
Os pagadores poderão iniciar os pagamentos por pelo menos três formas diferentes:
- com o uso de chaves ou apelidos para a identificação da conta, como o número do telefone celular, o CPF, o CNPJ ou um endereço de e-mail;
- por meio de QR Code; ou
- por aproximação, como a near-field communication (NFC).
"O Pix vai trazer uma grande interoperabilidade e indiferenciação entre ofertas de conta bancária e vai forçar os players que estão na cadeia de valor atual a migrarem para um serviço de conta", explica João Bragança, executivo da empresa de consultoria Roland Berger. As mais afetadas serão as empresas adquirentes, que operam as maquininhas de cartão, já que com a disseminação das transações instantâneas, esses dispositivos deixarão de ter utilidade.
Na corrida do mercado dos pagamentos instantâneos tenta se inserir também Mark Zuckerberg, que já iniciou os testes - primeiro suspensos pelo BC e depois liberados - para operar o WhatsApp Pay no Brasil. A ideia é permitir transações financeiras entre os contatos do aplicativo no próprio chat. O app tem uma base estimada entre 120 e 130 milhões de usuários, porém, até o momento, Zuckerberg fechou parceria apenas com Banco do Brasil, Nubank, Sicredi e Cielo, o que vai limitar o alcance da ferramenta.
O maior entrave, contudo, é a taxa de operação de 3,99%, que é considerada muito elevada e pouco atrativa para pessoas jurídicas. Em 2018, WhatsApp tentou lançar a modalidade de pagamentos na Índia, mas não obteve das autoridades regulatórias do país a permissão para operar. O resultado foi que o WhatsApp Pay foi integrado à UPI (Unified Payments Interface), ferramenta indiana equivalente ao Pix.
Apesar da muitas dúvidas que ainda pairam no cenário brasileiro sobre o funcionamento dessas novas ferramentas digitais e que se tornarão mais claras nos próximos meses, as novidades são avaliadas como positivas por especialistas. O dinheiro digital é rápido, seguro, imediatamente disponível e muito mais barato que o papel-moeda. A expectativa é que, no longo prazo, Pix, WhatsApp Pay e outros players que devem entrar no mercado levem à suplantação dos atuais métodos de pagamento como TED e DOC.
Tudo será realizado pelo smartphone. Não só o dinheiro em espécie será coisa do passado, mas também os cartões físicos de débito e crédito. Isso de fato já é possível, embora ainda pouco difundido. As carteiras se tornarão obsoletas e será possível sair de casa apenas carregando o celular. Ou até sem ele. O Picpay já iniciou testes no Brasil para validar os pagamentos por meio do reconhecimento facial.
Quanto tempo vai levar a mudança
Quão rápida se dará essa mudança? Muito vai depender de como os usuários se adaptarão às novas ferramentas e da qualidade dos serviços oferecidos pelas empresas do setor. As velhas modalidades, como cartão de débito e boleto, muito arraigadas na cultura brasileira, devem resistir por anos ainda. A comparação mais direta é com o cheque, cujo uso despencou 85% entre 1995 e 2017, segundo a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), mas ainda não desapareceu.
“O consumidor vai adotar o método de pagamento que for mais conveniente para ele. É a experiência do usuário que vai determinar o que for melhor”, afirma Gustavo Noman, coordenador do Comitê de Meios de Pagamentos da Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico. Segundo ele, o consumidor deve ter benefícios concretos na hora do pagamento antes de trocar as velhas ferramentas pelas novas.
Uma ajuda deve vir do barateamento do custo das transações, o que deve levar as empresas do setor a oferecerem condições mais vantajosas aos clientes, como descontos e “cashback”. Atualmente a taxa de operação dos cartões de débito gira em torno de 1% para os lojistas. O Banco Central prevê um custo de R$ 0,01 a cada dez operações no Pix, um valor praticamente nulo. A expectativa é de que usar a moeda virtual será muito mais conveniente para o pagador e para o recebedor.
O papel-moeda é muito caro de ser produzido e armazenado, além de custos com segurança, transporte e logística. A impressão das novas cédulas de R$ 200 recém-anunciadas pelo BC, por exemplo, vai custar R$ 113 milhões aos cofres públicos.
“A gente está construindo o Pix com a preocupação de ter benefícios para pagadores e recebedores. A escolha dos método de pagamento tem muitos elementos culturais, características sociodemográficas, faixa etária, nível de educação, nível de renda. Então esse processo de troca de um meio de pagamento por algo novo é relativamente demorado”, explicou Breno Lobo, executivo do Banco Central, em live sobre o tema.
A pandemia é mais um fator de aceleração nessa transição rumo à sociedade “cashless”. Nos últimos meses, boa parte do comércio varejista se transferiu para o mundo on-line, ao mesmo tempo que questões higiênicas nos incentivam a tocar cada vez menos nos objetos, seja dinheiro físico, cartões e maquininhas.
A expectativa das autoridades brasileiras é que as novas ferramentas de pagamento contribuam também para reduzir a legião de "desbancarizados", hoje estimada em 43 milhões de brasileiros. O pagamento do auxílio emergencial do governo já acelerou essa mudança, pois trouxe à tona milhões de pessoas que estavam fora do circuito financeiro. Com isso novos players devem entrar no mercado.
“Muita instituição de nicho chega onde as instituições do sistema financeiro tradicional não chegam. Então tem gente focada nessa população mal servida e não bancarizada que vai conseguir ofertar um serviço de qualidade, fácil, rentabilizar como negócio e facilitar esse processo de inclusão”, afirma Lobo.
Os efeitos no mercado: mais competição e novos players
Estudo da consultoria Roland Berger, divulgado em julho, avalia como potencialmente disruptiva a chegada do Pix e do WhatsApp Pay e calcula que as chamadas adquirentes serão as mais afetadas pelas mudanças. Empresas como Stone, Cielo e Rede, que liquidam as transações financeiras por meio de cartão de crédito e débito, podem perder entre 18% e 63% das suas receitas, ou seja, até R$ 13 bilhões, se não se adaptarem.
“Nesse cenário existirão ganhadores e alguns grandes perdedores. Carteiras digitais, bancos digitais e mesmo novos operadores, como big techs e varejistas, estão entre os principais ganhadores; por outro lado, adquirentes enfrentarão grandes desafios estratégicos e de rentabilidade”, avalia a consultoria.
A abertura do mercado deve fomentar a concorrência e a entrada de novos players, que hoje nem sequer existem, trazendo benefícios para os clientes. O professor de administração da Fundação Getulio Vargas (FGV) Eduardo Diniz aponta que um dos efeitos será a multiplicação das bandeiras de cartão, hoje concentradas nas mãos de poucas empresas internacionais.
“As condições locais determinarão um provedor de características locais sem ambição de ser um provedor nacional. Ele vai ser lucrativo porque vai atender uma comunidade suficientemente grande no entorno dele com um serviço de qualidade”, explica o especialista.
O impacto da revolução digital deve ir além do setor financeiro e afetar também o mercado da telefonia. Além dos 40 milhões de desbancarizados, 46 milhões de pessoas – um quarto dos brasileiros – não têm acesso à internet, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - Tecnologia da Informação e Comunicação (Pnad Contínua TIC) de 2018, divulgada em abril pelo IBGE.
“Tenho a impressão que vai começar a aparecer fornecedor de infraestrutura de comunicação nas regiões do país onde o sinal é muito ruim. Com essa oferta de serviços financeiros é provável que operadoras locais possam começar a atender um público que hoje está desatendido. Uma operadora, por exemplo, pode oferecer uma conexão de celular e junto um serviço de pagamentos”, sugere Diniz.
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