Prestes a completar seu primeiro ano, a atual gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) coleciona uma série de tentativas e de brechas para a chamada contabilidade criativa – ou seja, o uso de manobras contábeis para maquiar a situação fiscal ou driblar restrições ao Orçamento, abrindo espaço para mais despesas.
Práticas como essas foram frequentes em gestões petistas anteriores, em especial no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, que acabou perdendo o cargo num processo relacionado às chamadas "pedaladas fiscais".
A manobra mais recente foi um dispositivo da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) que limita a R$ 23 bilhões o valor que poderá ser contingenciado em 2024. Consultores da Câmara dos Deputados haviam calculado em R$ 56,5 bilhões o total que precisaria ser bloqueado até março, o que afetaria diretamente investimentos públicos e o pagamento de emendas parlamentares.
O contingenciamento é um mecanismo utilizado para a adequação do resultado primário projetado às metas fiscais estabelecidas, conforme a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Para contornar a exigência, o projeto da LDO – já aprovado – passou a blindar vários tipos de despesa do contingenciamento, incluindo todas as que estão excetuadas do limite de gastos no novo arcabouço fiscal. O artifício foi incluído pelo relator do projeto, deputado federal Danilo Forte (União-CE), mas atende a uma demanda da equipe econômica do governo.
Antes da saída encontrada pelo relator, o senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), líder do governo no Congresso, apresentara emenda que, grosso modo, proibia o bloqueio de despesas que impedissem crescimento real da despesa primária em 0,6%, conforme estabelecido pelo novo arcabouço fiscal. A sugestão, no entanto, era considerada insegura juridicamente, uma vez que confundia conceitos básicos do Orçamento.
“Não aceitaremos contabilidade criativa”, chegou a afirmar Forte no fim de novembro, em entrevista à CNN Brasil, sem citar diretamente a chamada “emenda Randolfe”.
Governo quer excluir do resultado primário recursos para Novo PAC
Ainda no projeto da LDO de 2024, o governo propôs, em agosto, excluir do cálculo do déficit primário até R$ 5 bilhões de despesas de estatais com o Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O dispositivo, inicialmente rejeitado pelo relator, acabou vingando na versão aprovada do texto na Comissão Mista de Orçamento (CMO), após acordo.
A meta prevista na peça orçamentária para as estatais é de um déficit de R$ 7,3 bilhões. Com a medida proposta pelo Planalto, as empresas podem gastar até R$ 12,3 bilhões sem descumprir a meta, o que, na prática, amplia a capacidade de investimento.
Outra ideia do Executivo classificada por economistas como tentativa de contabilidade criativa foi o pedido ao Supremo Tribunal Federal (STF), no fim de setembro, para pagar o acumulado de precatórios postergados durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL).
Isso porque a proposta encaminhada à Corte falava em separar as dívidas em duas partes: o valor principal continuaria classificado como despesa primária, enquanto juros e correções monetárias passariam a ser tratados como despesa financeira, sem impacto no resultado primário.
“Eu acho louvável o governo tentar resolver e pagar os precatórios postergados. Isso é positivo”, disse Manoel Pires, coordenador do Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV) à “Folha de S.Paulo”, à época. “Mas eu tenho dificuldade de entender os juros do precatório como uma despesa financeira porque decorre de uma despesa primária. Não há operação de crédito nisso”, completou.
Para Marcos Mendes, pesquisador associado do Insper e especialista em contas públicas, não há princípio legal ou de práticas contábeis que justifique a medida. “Se receber chancela jurídica, pode ter efeito sobre despesas primárias de juros muito além das despesas com precatórios”, declarou, à mesma publicação.
“E pior, o argumento de que precatório atrasado é dívida e, portanto, despesa financeira, passa a constituir incentivo para que, no futuro, se atrase o pagamento de precatórios, apenas para pagá-los como despesa financeira”, completou.
Ao fim da análise do caso, por nove a um, o STF autorizou o governo a pagar os precatórios atrasados ainda em 2023, estimados em R$ 95 bilhões, por meio de crédito extraordinário, porém sem a reclassificação contábil da despesa. O gasto não será contabilizado para fins de cumprimento da regra fiscal.
Valores que também seriam postergados até 2026, conforme emenda constitucional promulgada em 2021, poderão ser quitados também utilizando o mesmo expediente.
Fundo financeiro para apoiar estudantes abre brecha para contabilidade criativa
Até mesmo o incentivo financeiro à permanência de estudantes no ensino médio proposto pelo governo abre brecha para contabilidade criativa. A medida provisória editada no fim de novembro para estabelecer as diretrizes do programa prevê a participação da União no fundo que financiará o programa com até R$ 20 bilhões em recursos na forma de ações de estatais ou aportes diretos.
Diz ainda que a partir de 2024, leilões de petróleo e gás natural poderão prever que o vencedor faça aportes ao mesmo fundo. Tanto o uso de ações quanto os investimentos exigidos de empresas privadas passariam ao largo do cálculo de resultado primário.
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), no entanto, decidiu deixar o texto caducar e, na terça-feira (12), colocou em votação um projeto de lei, de autoria da deputada Tábata Amaral (PSB-SP), que também institui o incentivo financeiro a alunos do ensino médio. A proposta, protocolada em 2021, acabou aprovada em votação simbólica e agora segue para o Senado.
O texto foi aprovado na forma de um substitutivo do relator Pedro Uczai (PT-SC), que deixou para regulamentação posterior a forma como será realizada a integralização de cotas do fundo pela União.
Distorções contábeis começaram ainda na transição
A primeira distorção contábil surgiu ainda antes do início do atual governo, na proposta de Emenda Constitucional 32/2022, chamada de PEC fura-teto ou PEC da Transição, aprovada e promulgada em dezembro de 2022.
Um dispositivo do texto prevê a transferência de recursos de contas abandonadas do PIS/Pasep para o Tesouro classificando-os como receita primária. O problema é que, conforme o Manual de Estatísticas Fiscais do Banco Central, a operação deveria ser tratada como ajuste patrimonial, o que diminuiria a dívida pública, porém sem afetar a receita.
Em setembro, foram apropriados pela União R$ 25,98 bilhões esquecidos por cotistas dos programas. No Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias (RARDP) do quinto bimestre, a equipe econômica do governo reconhece o tratamento atípico dos recursos ingressantes.
Conforme relatam os autores do documento, a diferença de interpretação gerou uma “discrepância estatística” entre o resultado primário aferido pelo Banco Central naquele mês e o apresentado no relatório:
“Essa diferença ocorre devido à inclusão, por parte do Tesouro Nacional, como receita primária, de saldos não reclamados por um período superior a 20 anos em contas do PIS-PASEP, [...] enquanto a metodologia de compilação das estatísticas macroeconômicas do setor fiscal adotada pelo Banco Central exclui o valor do ingresso do PIS-PASEP da Necessidade de Financiamento do Setor Público – NFSP, uma vez que, segundo aquele órgão, esse valor se enquadra na definição de ajuste patrimonial e não representa um esforço fiscal no período”, diz o texto do governo.
Lula vetou dispositivo do acabouço fiscal que impedia contabilidade criativa
Sucessor da regra do teto de gastos, o chamado novo arcabouço fiscal, apresentado pelo governo em março, estabeleceu uma série de despesas que não serão alcançadas pelo limite anual de gastos. Em uma tentativa de impedir o uso da contabilidade criativa, parlamentares incluíram no texto um artigo que impedia a exclusão de despesas primárias do cálculo da meta de resultado primário na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO).
Aprovado pela maioria dos 513 deputados e 81 senadores do Congresso Nacional, o dispositivo acabou vetado por Lula na sanção da proposta, convertida no dia 31 de agosto na Lei Complementar 200/2023.
Em mensagem ao presidente do Senado e do Congresso, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), o presidente afirmou que a proposição legislativa contraria o interesse público, uma vez que a LDO seria o “diploma competente” para estabelecer e gerir as metas de resultado fiscal e que, por isso, deve conter a autorização expressa de medidas excepcionais como a exclusão de despesas do cômputo da meta.
Lula e, na sequência, os ministros da Fazenda, Fernando Haddad, e do Planejamento e Orçamento, Simone Tebet, argumentaram que o artigo impediria operações de encontro de contas de precatórios, que foram utilizadas no Orçamento de 2023, destacando que esse tipo de transação pode ser vantajosa para o contribuinte e para a União.
“A chamada contabilidade criativa legou muitos problemas às contas públicas e à economia, em período recente, e esse dispositivo funcionaria como espécie de vacina contra novas tentativas”, comentou o economista Felipe Salto, da Warren Rena, à época. “Ao retirá-lo, o governo dá um mau sinal nesse aspecto.”
No último dia 14, no entanto, em uma derrota para o governo Lula, o Congresso derrubou o veto presidencial ao dispositivo.
Reforma tributária promete simplificar impostos, mas Congresso tem nós a desatar
Índia cresce mais que a China: será a nova locomotiva do mundo?
Lula quer resgatar velha Petrobras para tocar projetos de interesse do governo
O que esperar do futuro da Petrobras nas mãos da nova presidente; ouça o podcast