Empenhando em sua agenda econômica intervencionista, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) insiste em desfazer atos liberalizantes dos governos de Jair Bolsonaro (PL) e Michel Temer (MDB). Embora a estratégia tenha rendido ao Planalto alguns reveses – como as derrotas nas tentativas de alterar o Marco do Saneamento e de reverter a privatização da Eletrobras, barradas pelo Legislativo – a intenção segue adiante, agora, com a ideia de revogar pontos da reforma trabalhista, aprovada em 2017 na gestão Temer.
A reforma buscou privilegiar as negociações diretas entre empregadores e funcionários e inibir uma indústria de ações trabalhistas que sobrecarregava empresas e Poder Judiciário. O governo petista, em sentido oposto, quer reforçar as amarras do Estado sobre as relações de trabalho e restabelecer o financiamento compulsório dos sindicatos pelos trabalhadores.
Ao mesmo tempo em que busca retroceder na modernização das leis trabalhistas, a gestão Lula quer liderar a tarefa de regulamentar novas formas de trabalho trazidas pelos avanços tecnológicos. Nessa discussão, o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, chegou a sugerir que os Correios poderiam assumir a função de aplicativos de transporte caso estes deixem o país. E não incluiu liderenças de entregadores no grupo de trabalho que discute a regulação.
Marinho, que já havia rotulado a reforma trabalhista como "uma tragédia", voltou à carga neste mês contra as mudanças na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a Lei de Terceirização. Marinho disse, durante a instalação da mesa do grupo que vai discutir a regulação de aplicativos, que as mudanças contribuíram para "precarização do emprego e crescimento desastroso do trabalho análogo à escravidão", acenando com a perspectiva de revisão já para o segundo semestre.
Ciente da dificuldades de revogação da reforma trabalhista no Congresso, que tem servido de anteparo às investidas revisionistas, a base governista atua pelas bordas e conseguiu, na semana retrasada, aprovar na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa dois projetos que se antecipam no propósito de alteração da lei.
De autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), o primeiro acaba com a possibilidade de extinção do contrato por acordo entre empregado e empregador e o segundo limita a duração do contrato de trabalho de tempo parcial a 25 horas semanais.
Críticas à reforma trabalhista refletem viés estatizante do governo
Na essência, as críticas e as iniciativas refletem a perspectiva estatizante do atual governo, que quer atrelar todas as situações do mercado de trabalho ao modelo engessado da CLT e da antiga estrutura sindical, base originária do PT.
A CLT, promulgada há 80 anos, na era Vargas, ainda é a maior balizadora do emprego formal, com quase 42,8 milhões de contratos, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).
Inspirada no corporativismo fascista italiano, a CLT atendeu à necessidade de regular a relação capital-trabalho num momento de rápida industrialização e urbanização. Mas desde então muita coisa mudou e a necessidade de flexibilização se tornou reivindicação recorrente do empresariado e da sociedade.
A reforma do governo Temer, em 2017, foi a principal alteração da CLT desde sua promulgação. Com ela, alguns pontos fundamentais foram oxigenados. Ganharam mais peso as negociações coletivas entre patrões e empregados, que passaram a prevalecer sobre a legislação. Também foi aprovada a possibilidade da divisão de férias e o trabalho intermitente, sistema em que o empregado pode trabalhar em situações pontuais, remunerado por hora trabalhada.
Especialistas dizem que reforma trabalhista ajudou a conter impactos da pandemia
As críticas do Ministro Marinho, além de estarem na contramão das expectativas do empresariado, não parecem corroborar com a realidade. Embora seja difícil quantificar os benefícios da reforma para o mercado de trabalho, principalmente por causa do intervalo de dois anos de pandemia, especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo afirmam que as mudanças na CLT foram importantes exatamente na redução do impactos da Covid-19 sobre a economia.
"Pode-se dizer com certeza que, sem a reforma de 2017, as consequências da pandemia para o mercado de trabalho seriam piores", afirma o economista Alexandre Chaia, professor do Insper e gestor da Carmel Capital. Para ele, as críticas do ministro são apenas "populistas", para agradar sua base.
Chaia lembra que emprego e a remuneração de qualidade não dependem de leis ou decretos, mas de inúmeros fatores, entre eles o crescimento econômico. "A precarização do emprego é o reflexo da incapacidade do governo de possibilitar um ambiente de negócios favorável à geração de investimentos", diz.
Hélio Zylberstajn, professor sênior da FEA-USP e coordenador do Salariômetro da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), vê "distorção e exagero" nas críticas. "Analogia à escravidão é simplismente absurdo", diz o economista.
Ele lembra que a própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) concluiu que a reforma não trouxe prejuízos ao trabalhador: "As centrais sindicais denunciaram o país à OIT por duas vezes, uma após a promulgação da reforma e outra após a pandemia. Em ambas, o governo brasileiro foi absolvido".
Reforma trabalhista desestimulou litígio na Justiça e gerou vagas, diz estudo
Um estudo conjunto de economistas da USP e do Insper, de 2022, mensurou os benefícios gerados por um dos pontos da reforma trabalhista. A nova legislação estabeleceu que o empregado deve arcar com os honorários ao advogado da empresa, em caso de derrota.
Segundo o estudo, a alteração desestimulou as ações na Justiça, especialmente nos casos em que não há certeza de vitória, o que diminuiu o custo das empresas para abrir novas vagas.
O estudo calculou, por meio de um sofisticado exercício econométrico, uma redução de 1,7 ponto porcentual na taxa de desemprego e o aumento de 2% na taxa de emprego, o que correspondeu à criação de 1,7 milhão de vagas até 2022.
"Existia uma verdadeira indústria de ações trabalhistas que oneravam as empresas e sobrecarregavam o Judiciário. A reforma não impediu as reclamatórias, mas moralizou o sistema de litígio", avalia Zylberstajn.
Para economista, ataques à reforma são "cortina de fumaça" para resgatar imposto sindical
Para Zylberstajn, a insistência nas críticas à reforma trabalhista é uma "cortina de fumaça" para a intenção do governo de resgatar o financiamento dos sindicatos. A reforma pôs fim ao imposto sindical, contribuição compulsória de todos os trabalhadores para os respectivos sindicatos, no valor de um dia de trabalho por ano.
Para dar a dimensão do "prejuízo", com o fim da compulsoriedade a arrecadação dos sindicatos de R$ 3,05 bilhões arrecadados apenas de janeiro a novembro de 2017, antes da reforma, para R$ 65,5 milhões em 2021. O próprio presidente Lula mencionou, em defesa da revisão, a "asfixia financeira" dos sindicatos após o fim do imposto.
A compulsoriedade só teria sentido, para Zylberstajn, num cenário de multiplicidade e democracia sindical, onde o trabalhador escolhe o sindicato que o representa. Isso não acontece no país, pois aqui existe a chamada 'unicidade sindical' por categoria de trabalho. "Atualmente temos um monopólio sindical com mercado cativo", diz o professor.
O que está em discussão no governo não é exatamente uma reforma sindical, e sim uma forma de continuar financiando o monopólio. Em abril, o ministro Luiz Marinho disse à "Folha de S.Paulo" que é "plausível" a ideia de que o imposto seja deliberado em assembleia das categorias, passando a valer para todos os trabalhadores, inclusive os não sindicalizados. Ou seja, uma compulsoriedade disfarçada.
Criticada pelo governo, Lei da Terceirização deu segurança jurídica a empresas
Outras críticas recorrentes demonstram a dificuldade do governo em conviver num ambiente de maior liberdade nas relações de trabalho. Uma delas é a resistência à terceirização, aprovada pelo Legislativo também em 2017, na esteira da reforma.
A lei, que permitiu às empresas terceirizar qualquer atividade, desde que garantam as devidas proteções aos trabalhadores, continua sendo distorcida pela narrativa sindical como tática de driblar os direitos sociais.
Os dados mostram, no entanto, que as empresas não deixam de contratar para terceirizar. Segundo Fernando Peluso, advogado e professor do Insper, quem conhece gestão empresarial sabe que há atividades que as empresas não querem e não podem terceirizar.
A lei conseguiu regularizar uma situação existente, com visíveis impactos positivos. "Havia uma discussão interminável sobre as atividades que poderiam ser terceirizadas. A regulamentação trouxe segurança jurídica para as empresas, com reflexo direto na decisão de investimentos", afirma.
Governo quer regime rígido para trabalhadores de aplicativos
Na outra ponta da discussão da chamada "precarização do trabalho" estão as mudanças tecnológicas, que impõem ao governo desafios maiores do que ele parece conseguir enfrentar. Em especial o trabalho por plataformas, como Uber e iFood.
Existe razoável consenso entre os agentes econômicos sobre a necessidade de definir alguma regulamentação das novas modalidades. Mas a tarefa não é simples. Um dos caminhos, segundo Peluso, seria uma regulamentação semelhante à que vem sendo feita em países da Europa, como Inglaterra e Espanha, onde a lei reconhece o trabalho assalariado e o autônomo, e acrescenta um terceiro modelo intermediário, onde se garante benefícios sociais e previdenciários ao trabalhador.
Mas, em reunião sobre o tema, o ministro Marinho disse que oferecer somente contribuição à Previdência Social para os trabalhadores de aplicativos "é muito pouco" e que as empresas não podem ter "lucro extravagante" enquanto há "superexploração do trabalho".
Impor o regime celetista aos trabalhadores de aplicativos, porém, não é a solução, principalmente porque as características são outras. Peluso lembra que eles não têm horário fixo de trabalho e, principalmente, não existe subordinação, já que o trabalhador pode escolher o serviço que quer realizar: "Não se pode tratar igual os diferentes. Isso inviabilizaria os negócios".
O ministro Luiz Marinho, enquanto isso, cogitou a possibilidade de desenvolver um serviço via Correios para substituir a Uber se a empresa decidir deixar o Brasil em resposta à regulamentação do setor.
Também chamou atenção o fato de que, ao formar um grupo de trabalho para discutir normas para os aplicativos, o Ministério do Trabalho não convidou um único líder de entregadores. Os 45 membros do colegiado são do governo, de empregadores e de centrais sindicais.
Governo dá pouca atenção a desafios reais do mercado de trabalho
Outros aspectos também dividem os especialistas. Para Hélio Zylberstajn, a regulamentação é ainda mais complexa. "As inovações tecnológicas diluíram as fronteiras entre a produção e o consumo, por isso as relações trabalhistas tendem a ser multilaterais". Isso significa, para ele, que além da plataforma e do trabalhador, precisa entrar na equação a responsabilidade dos estabelecimentos comerciais e do próprio consumidor.
Alexandre Chaia, por sua vez, defende que o governo deveria ser apenas o facilitador das negociações, impulsionando o desenvolvimento do setor via agência reguladora, já que a dinâmica do mercado de trabalho tende a impor cada vez mais questões para serem avaliadas.
Além da tecnologia e dos aplicativos, Chaia lembra que mudanças de parâmetros e condições, como o home office – impulsionado na pandemia e que se tornou tendência – também poderiam estar na pauta de discussões. "São desafios reais a serem enfrentados", diz. A realidade e as transformações, no entanto, não parecem ter prioridade no radar do governo.
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