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O governo federal conta com um resultado folgado a seu favor nesta quarta-feira (18), quando o Tribunal de Contas da União (TCU) retoma o julgamento da privatização da Eletrobras.
A expectativa é de que a modelagem da venda seja aprovada por um placar de 7 a 1, com voto contrário apenas do ministro Vital do Rêgo, que pediu vistas e interrompeu o julgamento há quase um mês. Presidente da Corte, a ministra Ana Arraes provavelmente não votará. A primeira fase da privatização foi aprovada pelo TCU em meados de fevereiro. Apenas Vital do Rêgo votou contra naquela ocasião.
A venda da Eletrobras, se concretizada, será a principal privatização do governo Bolsonaro. O novo ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida, trabalha com afinco para que ela saia ainda neste ano, e se reuniu com pelo menos seis ministros do TCU para discutir a questão entre segunda (16) e terça-feira (17). Antes mesmo de assumir o cargo, ele já a definia como prioridade da agenda econômica para 2022.
Apesar do provável avanço desse processo, o fato é que, a menos de cinco meses das eleições presidenciais, a agenda de privatização de grandes estatais não saiu do papel como planejado pela equipe econômica. Ela era uma das principais bandeiras do ministro da Economia, Paulo Guedes, que em várias ocasiões citou a intenção de arrecadar R$ 1 trilhão com a venda de empresas.
Até o momento, porém, o governo conseguiu repassar ao setor privado apenas uma estatal sob controle direto da União: a Companhia de Docas do Espírito Santo (Codesa), administradora dos portos de Vitória e Barra do Riacho (ES). O valor arrecadado com a outorga foi de R$ 106 milhões.
Os maiores avanços do governo Bolsonaro em termos de redução do Estado ocorreram com a venda de subsidiárias e ativos de grandes estatais, aí incluídas refinarias e campos de petróleo da Petrobras; vendas de participações do BNDES em empresas; e concessões de ativos de infraestrutura ao setor privado. Mas, por ora, o presidente da República ainda não tem uma grande privatização para exibir na vitrine eleitoral. Uma série de fatores explica a frustração dos planos:
- vetos a privatizações do próprio Planalto;
- resistência de ministros à venda de empresas sob seu controle;
- desistência da venda de estatais por “imperativos da segurança nacional” ou “relevante interesse coletivo”;
- burocracia envolvida na privatização, que tem muitas etapas e exige aprovação de várias instâncias;
- resistências no Congresso; e
- demora na aprovação por parte do TCU.
Guedes manifestou incômodo com a burocracia necessária para a venda de empresas, a ponto de, ainda em 2019, anunciar a ideia de um "Programa de Aceleração das Privatizações" (PAP). Ele queria um "fast track" para que, em vez de as propostas serem analisadas uma a uma, o governo encaminhasse ao TCU e ao Congresso um projeto para desembaraçar várias privatizações ao mesmo tempo.
"Eu quero privatizar todas as empresas estatais. Essa é a proposta. A decisão final é do Congresso. A minha obrigação é fazer o diagnóstico e entregar a prescrição. O Congresso vai decidir", disse Guedes na época. Mas ele nunca formalizou a proposta do "fast track".
Na semana passada, em reação à irritação do presidente Jair Bolsonaro com a alta dos combustíveis, Guedes e Sachsida anunciaram planos para privatizar a Petrobras, maior empresa do país, e a PPSA, responsável pela gestão de contratos do pré-sal. Um dia após encontro dos dois, foi publicada a resolução que recomenda a inclusão da PPSA no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI).
Essa proposta um pouco mais "formal" de vender a Petrobras, com Sachsida pedindo início de estudos nesse sentido, é novidade. No ano passado, houve apenas declarações de Bolsonaro dizendo ter "vontade" de passar a empresa ao setor privado.
A intenção de vender a PPSA, por outro lado, era citada por Guedes desde 2020, pelo menos, mas o ex-ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, se opunha à privatização. Por isso, só agora o governo deu o primeiro passo nesse sentido, para além de declarações públicas. De todo modo, é pouco provável que qualquer uma das duas empresas seja vendida ainda neste ano.
Venda da Eletrobras é analisada pelo TCU há um ano. A dos Correios parou no Congresso
Guedes se queixou publicamente da demora do TCU em aprovar a privatização da Eletrobras, fazendo referências a rumores de que o ministro Vital do Rêgo estaria agindo a pedido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O BNDES encaminhou os primeiros documentos da privatização da Eletrobras ao TCU há um ano. A venda da estatal já foi autorizada pelo Congresso, há onze meses, mas o governo conta com o aval da Corte de Contas como uma espécie de "seguro" contra processos na Justiça.
Um estudo mostrou que o TCU descumpre seus próprios prazos na análise de operações desse tipo, mas o Tribunal contesta a metodologia utilizada. O TCU também emperrou a liquidação da Ceitec, fabricante de semicondutores (chips) criada no governo Lula que o governo Bolsonaro pretende fechar.
Outra grande privatização que ganhou holofotes, a dos Correios, enfrentou resistências no próprio governo. Em meados de 2019, o presidente Jair Bolsonaro decidiu demitir o então presidente da estatal, que se opunha à venda. Superado esse obstáculo, o projeto estacionou no Congresso. A Câmara o aprovou, mas o Senado não o levou adiante.
A secretária especial do PPI, Martha Seillier, afirmou meses atrás que a privatização dos Correios só ocorreria em 2022 se o Congresso a aprovasse até abril, no máximo.
Primeira lista de privatizações tinha 15 estatais; várias "escaparam" antes
A primeira "lista oficial" de estatais que o governo pretendia privatizar ou fechar foi divulgada em agosto de 2019. Havia 15 empresas na relação:
- Emgea (Empresa Gestora de Ativos);
- ABGF (Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias);
- Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo);
- Ceitec (Centro de Excelência em Tecnologia Eletrônica Avançada);
- Telebras;
- Correios;
- Companhia de Docas de São Paulo (Porto de Santos);
- Serpro;
- Dataprev;
- Eletrobras;
- Casa da Moeda;
- CBTU (Companhia Brasileira de Trens Urbanos);
- Trensurb (Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre S.A.);
- Ceasaminas; e
- Codesa (Companhia de Docas do Espírito Santo).
Antes mesmo da divulgação dessa lista, quase duas dezenas estatais já tinham "escapado" da privatização. Ainda na campanha eleitoral, Bolsonaro interditou discussões sobre a venda de empresas como Petrobras, Caixa, Banco do Brasil e BNDES. Depois, outras empresas – como EBC, EPL e Valec – tiveram a venda ou fechamento "proibidas" pelos ministros responsáveis.
Mais adiante, em julho de 2019, oito empresas foram retiradas dos planos, das quais sete dependem de recursos públicos para funcionar:
- Ebserh, que gerencia hospitais universitários;
- Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA);
- Grupo Hospitalar Conceição (GHC), também com atuação em Porto Alegre;
- Embrapa, empresa de pesquisa e desenvolvimento na área da agropecuária;
- Amazul, de desenvolvimento de tecnologias nucleares;
- Emgepron, de projetos navais;
- Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM); e
- Imbel, fabricante de armas e outros materiais bélicos.
Na época, a Secretaria de Desestatização, Desinvestimento e Mercados do Ministério da Economia informou à Gazeta do Povo que a decisão de manter essas estatais estava relacionada a “imperativos da segurança nacional” e/ou “relevante interesse coletivo”.
Em janeiro, o PPI tinha 12 estatais na lista das que poderiam ser vendidas neste ano. De todas, somente a Codesa foi vendida até agora:
- Eletrobras;
- Codesa;
- ABGF;
- Trensurb;
- Correios;
- Serpro;
- Dataprev;
- Emgea;
- Cesasaminas;
- Nuclep;
- Porto de Santos (SP); e
- CBTU
Além da dificuldade em avançar na venda de suas empresas, o governo Bolsonaro criou duas estatais. Em dezembro de 2020, foi formalizada a abertura da NAV Brasil, sob comando do Ministério da Defesa, responsável pelo controle de navegação aérea da Infraero. Foi a primeira nova estatal desde a ABGF, de 2013. Em setembro de 2021, o presidente assinou decreto de criação da ENBpar, que será responsável por gerir Itaipu Binacional e Eletronuclear após a venda da Eletrobras.
Por que as privatizações não foram adiante, segundo especialistas
"As privatizações e a proposta de diminuir um pouco esse grande desembolso do Estado com algumas empresas e tentar acertar um pouco as contas públicas foram uma plataforma de governo", lembra Juliana Inhasz, doutora em Teoria Econômica pela Universidade de São Paulo (USP) e professora no Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper). "Mas isso não aconteceu."
Faltou empenho e articulação política por parte do governo de Bolsonaro, na visão de analistas. "A falta de planejamento e todo um projeto para o país foi decisivo para as privatizações não andarem ao longo dos quatro anos de governo", afirma Piter Carvalho, economista da Valor Investimentos.
Na perspectiva dele, até mesmo a privatização da Eletrobras pode ser comprometida pelo que vê como falta de habilidade política do Executivo. "A desestatização da Eletrobras também deve morrer na praia. Ao meu ver, o governo acabou dormindo no ponto e não aproveitou a popularidade do início do mandato e também seu forte apoio no Congresso."
Outro fator de peso que dificultou o avanço da pauta foi a pandemia de Covid-19, lembra a economista do Insper. "A pandemia também desviou muito o foco. No começo, o governo já tinha capital político relativamente baixo, e eles tiveram que se concentrar, querendo ou não, na sobrevivência em um momento de muita incerteza que foi a pandemia", afirma ela. "Isso desgastou bastante. Mas, mesmo sem a pandemia, o governo teria tido dificuldade, porque é uma pauta polêmica."
Segundo a economista, sem o fator pandemia, o Planalto teria tido, ao menos, tempo hábil para costurar alianças e tentar vender a pauta com mais força entre seus pares e aliados. "Ele gastou energia durante um bom tempo para conseguir fazer o combate à pandemia, e isso consumiu dinheiro, que era fundamental para que ele conseguisse os apoios. Porque, de alguma forma, para aprovar privatizações, por exemplo, ele teria que dar cargos, liberar verbas", diz ela.
A própria equipe econômica do governo reconhece a falta de capital político e de base governista para fazer com que as propostas avançassem. Houve, ainda, segundo o ministro Paulo Guedes, resistências internas no Planalto e na Esplanada – alguns ministros trabalharam para que empresas sob seu controle não fossem privatizadas.
"Qual o plano para os próximos anos? Continuar com as privatizações. Petrobras, Banco do Brasil, todo mundo entrando na fila, sendo vendido e isso sendo transformado em dividendos sociais. Eu chego aqui cheio de ideias, planos e sonhos. Agora, é a política que comanda o processo todo. Ela pode travar, ela pode desacelerar, ela pode interromper", disse o ministro em evento promovido pela International Chamber of Commerce-ICC Brasil.
Em setembro de 2020, Guedes disse haver boatos de que o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, teria feito um acordo com a esquerda para barrar as privatizações. Dois meses depois, o ministro culpou acordos políticos de centro-esquerda para travar os processos – essa seria a razão que, segundo ele, impediu o anúncio de quatro grandes privatizações em 90 dias, que ele havia prometido meses antes.
"Estou bastante frustrado com o fato de a gente estar aqui há dois anos e não ter conseguido vender nenhuma estatal. Até por isso um secretário meu foi embora. Isso é lamentável", disse Guedes também em novembro de 2020, no evento "Boas práticas e desafios para a implementação da política de desestatização do governo federal", promovido pela Controladoria-Geral da União (CGU).
Ele fazia referência a Salim Mattar, que foi secretário de Desestatizações, Desinvestimentos e Mercados e deixou o governo pela falta de avanços na pautas das privatizações.
No mesmo evento, Guedes reiterou que o governo pretendia vender Correios, Eletrobras, Porto de Santos e PPSA ainda em 2021.
Sobre o novo plano de vender Petrobras e PPSA, não há tempo hábil para avançar com o processo neste ano. "A privatização da Petrobras também é uma história que vai ficar só como uma história", diz Juliana.
Privatizações foram peça-chave na "conquista" do mercado, mas hoje são vistas com ceticismo
Ao lado de outras pautas de cunho liberal, as privatizações foram peça-chave na conquista do apoio do mercado à campanha que levou Jair Bolsonaro à presidência da República. Em 2022, porém, essa agenda tende a ser vista com mais ceticismo.
"O governo perdeu credibilidade, principalmente com investidores, dado o grande número de promessas e pouco fez. Acabou virando o governo que mais fala, mais usa a internet e menos coloca a mão na massa", critica Carvalho.
Juliana corrobora: "Tem uma parte do mercado que se alinha a Bolsonaro, mas outra parte se decepcionou, porque esperava medidas como as privatizações para conseguir ver um avanço maior da economia e não viu", afirma ela.
"O mercado entende que Bolsonaro prometeu muito e fez pouco. Então, se aparecer alguém que prometa um pouco mais de benefício, o mercado vira. O mercado tem medo do Lula até o momento que ele mostrar que tem pautas pró-mercado, ainda que isso não seja completamente verdade, que não saia completamente do papel", acrescenta a economista.
Concessões de infraestrutura avançaram no governo Bolsonaro
Se por um lado as grandes privatizações ficaram no discurso, por outro houve avanço significativo na agenda de concessões e privatizações de subsidiárias de estatais e de ações detidas pela União. Essas pautas são de menor complexidade e, no geral, não dependem de autorização do Congresso.
Em dezembro de 2021, o governo informou ter arrecadado até então um total de R$ 227 bilhões com desestatizações de todo tipo, em especial concessões de ativos de infraestrutura.
"Não conseguimos andar com as pautas principais, mas, de fato, as concessões são um ponto a favor. Mas sem a privatização, a concessão não é o melhor dos mundos, mas uma solução factível para resolver uma parte do problema no curto prazo", explica Juliana Inhasz. "De fato, as concessões foram muito positivas. Mas esperávamos um conjunto de concessões mais privatizações, que conseguissem garantir um resultado mais promissor para a economia do país."
Mesmo com os avanços na agenda de concessões, para Piter o governo acabou gerando muita instabilidade política e risco fiscal, especialmente quando propôs medidas que interferiram no teto de gastos, como a PEC dos precatórios. Na avaliação dele, a perda de previsibilidade do país afugenta o investidor estrangeiro de longo prazo.
"É importante para o investidor entender onde o Brasil está e para onde vai. Se todo dia fica essa briga de sai ministro, entra ministro, troca presidente, intervém nas empresas, o investidor acaba ficando perdido, e fica de braços cruzados", explica.